Tirada daqui
O discurso do secretário-geral era preparado vagarosamente.
Pequenas xícaras de chá, de louça chinesa florida, estavam dispostas na mesa.
Um assessor redigia afanosamente as palavras do líder. Duas janelas
semi-abertas faziam os cortinados de seda dançar de forma insinuada, num final
de manhã morno de Maio. Lá fora só o silêncio. A sede do Governo estava situada
a uma distância considerável da estrada movimentada mais concorrida. Dois
carros, modelos cénicos, do pós-guerra, estavam estacionados em frente à porta
de entrada do palácio governamental. Dois soldados garbosamente fardados, em
tons de caqui, com botas engraxadas até aos joelhos, chapéus militares
enterrados até às pestanas. O queixo imóvel, amparado por presilhas apertadas. O
secretário-geral refletia, como sempre, sobre prioridades. Sentia um país
estagnado, mas fiel. As pessoas, quanto muito, recorriam à reserva da
intimidade para conspirar eventuais mudanças. Em público não o faziam.
Acreditava que por recato e respeito. Era uma pátria disposta em cruz, como
gostava de acreditar. As pessoas aos pés de um local de adoração, e um líder
comprometido. Compromisso, gritou em tom médio. O assessor redigiu várias vezes
a mesma palavra, como lhe foi pedido. Segurava com tanta força uma caneta de
aparo, que não conteve uma gota de suor que intrepidamente caiu, como uma gota
de chuva, em cima do papel. Um canto já redigido ficou parcialmente borrado,
deixando o assessor com receio de ser repreendido. O grande líder estava
alheado, e pareceu não se ter perturbado com algo em que nem reparou. Pousava
lentamente a mão direita no peito, amparando a gravata de seda azul. Era um
homem de meia idade. Mas de aparência mais velha. Tinha nascido no meio do
povo. O pai era pastor, nas montanhas isoladas do Norte. Morreu jovem,
deixando-o com a mãe costureira que, em dificuldades de sustento, se viu
obrigada a voltar para casa dos pais. Lembrava-se por isso, com muito mais
intensidade e devoção, do que tinha recebido dos avós. Carinho, mas uma
distância que, sempre considerou, o favoreceu como ser humano. E o que achava uma tendência inata para a liderança que, pensa, sempre ter tido.
Alheou-se um pouco nestes pensamentos, antes de perceber que estava a fazer
esperar o assessor. Pedia um discurso cativante, para a próxima fase do país…
Por isso voltou à realidade.
Such amazing prose. Such a haunting description! & so bold!
ResponderEliminar:-)
EliminarThank you
Excellent imagery! And many levels to absorb. Thanks for this piece.
ResponderEliminarThanks for the powerful reading.
EliminarVisualizei a cena.
ResponderEliminarPaís estagnado também, aqui e agora, senão pior ainda.
Poderá haver algum bom líder que nos nos possa saber levar a bom porto??...
Se há, ainda não nasceu.
Eliminar:-)
Obrigado pela presença