2024/02/08

O Grande Líder

 

                                                                             Tirada daqui

“Sophia de Mello Breyner Andresen”,
curta-metragem documental de João César Monteiro, 1969

O discurso do secretário-geral era preparado vagarosamente. Pequenas xícaras de chá, de louça chinesa florida, estavam dispostas na mesa. Um assessor redigia afanosamente as palavras do líder. Duas janelas semi-abertas faziam os cortinados de seda dançar de forma insinuada, num final de manhã morno de Maio. Lá fora só o silêncio. A sede do Governo estava situada a uma distância considerável da estrada movimentada mais concorrida. Dois carros, modelos cénicos, do pós-guerra, estavam estacionados em frente à porta de entrada do palácio governamental. Dois soldados garbosamente fardados, em tons de caqui, com botas engraxadas até aos joelhos, chapéus militares enterrados até às pestanas. O queixo imóvel, amparado por presilhas apertadas. O secretário-geral refletia, como sempre, sobre prioridades. Sentia um país estagnado, mas fiel. As pessoas, quanto muito, recorriam à reserva da intimidade para conspirar eventuais mudanças. Em público não o faziam. Acreditava que por recato e respeito. Era uma pátria disposta em cruz, como gostava de acreditar. As pessoas aos pés de um local de adoração, e um líder comprometido. Compromisso, gritou em tom médio. O assessor redigiu várias vezes a mesma palavra, como lhe foi pedido. Segurava com tanta força uma caneta de aparo, que não conteve uma gota de suor que intrepidamente caiu, como uma gota de chuva, em cima do papel. Um canto já redigido ficou parcialmente borrado, deixando o assessor com receio de ser repreendido. O grande líder estava alheado, e pareceu não se ter perturbado com algo em que nem reparou. Pousava lentamente a mão direita no peito, amparando a gravata de seda azul. Era um homem de meia idade. Mas de aparência mais velha. Tinha nascido no meio do povo. O pai era pastor, nas montanhas isoladas do Norte. Morreu jovem, deixando-o com a mãe costureira que, em dificuldades de sustento, se viu obrigada a voltar para casa dos pais. Lembrava-se por isso, com muito mais intensidade e devoção, do que tinha recebido dos avós. Carinho, mas uma distância que, sempre considerou, o favoreceu como ser humano. E o que achava uma tendência inata para a liderança que, pensa, sempre ter tido. Alheou-se um pouco nestes pensamentos, antes de perceber que estava a fazer esperar o assessor. Pedia um discurso cativante, para a próxima fase do país… Por isso voltou à realidade.

6 comentários:

  1. Such amazing prose. Such a haunting description! & so bold!

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  2. Excellent imagery! And many levels to absorb. Thanks for this piece.

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  3. Visualizei a cena.
    País estagnado também, aqui e agora, senão pior ainda.
    Poderá haver algum bom líder que nos nos possa saber levar a bom porto??...

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Acha disto que....