2018/10/31

O velho dilema do espaço e tempo

ainda assim escreve-se,
o velho que se fartou de viver,
e cheira fetidamente dos sovacos,
que já foram de uma pele de seda,
a parte escura de uma
mulher que nunca o chegou a ser,
o menino que morreu ao
primeiro toque de sua mãe,
e os adeuses,
as fartas porções de deixar tudo
ali,
sem retorno,...

escreve-se sempre,
porque parar de imaginar a
luz em que a
parte insubstituível da vida,
pode ser definida,
pararia o tempo,
e tornaria o espaço
sem resgate


2018/10/30

'Thou shall come by the night'

hei-de vir,
noite após noite,
até não saberes mais
 como me chamar
de sombra,
de rasto amarelecido
na morte da água que,
escorrendo das paredes,
mata a boca de silêncio
com que me recebias de nu na boca,....

e quando não vier,
saberás o mal,
o não querer mais
desenhar-me num
sonho que nunca aconteceu,
e seres fiel
sem saber fidelizar
a vontade de estar,
só por estar,....

rasga o particípio
deste passado,...

e acabou


2018/10/29

Sexus

eles vulgarizavam o sexo, 
tornavam-no comezinho,
coisa de dia a dia ininterrupto,...

falavam ao sol nas peles 
gastas das mulheres,
que havia mais 
ardida tentação 
num entardecer 
de gemidos,
no que em 
mil venerações 
suspensas 
pelo amor,...

eram banais 
os poemas 
escritos 
a esperma,
num quarto 
escuro e perdido 
na cidade das pessoas 
equivocadas,...

soava a 
puro a 
forma como 
tudo isto 
encaixava no real


2018/10/28

Amor personagem das noites

sussurrei o que teve de ser,
afirmar a pequenez do meu ser,
dizendo que se calhar 
iria dissolver aquele momento,
o nosso momento,
e esperar pelas pedras soltas 
que há muito gritavam a partida,...

não sei dizer mais que o 
aperto de todos os dias,
passados a pensar o adeus,...

que te fique a poesia,
a mesma que te acordava,
quando havia ainda amor 
personagem das noites 


2018/10/27

Sem tempo ou forma

é hoje,
ou foi antes de hoje,
antes que ontem tivesse vindo,
já me teria esquecido de 
ser tão vulgar chamar 
pelo amanhã,
quando só me apetece abraçar
 a noção de não ter tempo,
lugar,....

só pensar que não 
quis ser criança 
impossível de definir,
não faz de mim 
uma precisa idade de nada,
antes o labor de a 
cada dia que se fecha,
de forma tão 
pouco precisa,
já não ir estar,...

vestido de 
pele gasta,
e sem a 
deformação 
da velhice 

2018/10/26

Usual esquecimento

hás-de encontrar o que sobra,
o que resta,
aninhado nos enleios
do chão sujo de memórias,
com o sangue do
último sacrifício
incrustrado,
em semente,
ao canto de uma sala
qualquer do que foi a tua vida,...

enquanto isso a água
corre lá fora,
com um vento
assemelhado
aos lobos da noite,
soltos pelo prado,
falando impropérios
em todas as línguas do mundo,...

não sei mais
se dizer-te para esperar,
servirá para pintar este,
como outro quadro,
sem autor,
esquecido


2018/10/25

Um dia gostava de saber escrever assim

MANHÃS


Pendurada numa corda da roupa de um sétimo andar,
atrás de um prédio enferrujado,

todas as suas varandas envidraçadas ou com grades,
ali, em cada manhã, está uma pequena gaiola quadrada.

Cativo nesta provocação contra o céu,
nesse intervalo reflexivo entre apelo e canção,

esse Vazio que as aves nos "ofereceram",
ali na perversidade fixa de uma vertigem,

o tentilhão debate-se esporadicamente, desarmado,
mudo. Não, freneticamente vocal, mas sem ser ouvido. 

Queremos que isto seja uma ode.


John Mateer
in Telhados de Vidro n.º 18, trad. de Inês Dias,
Lisboa: Averno, Maio de 2013

Insónias de chuva

na maioria choravas
a dizer o vento,
dormias de boca
encostada aos
desencontros de céu,
que pintavam irregularmente
as ruas de um
molhado incendiado,...

a noite servia para argumentarmos
as escaras do silêncio,
eu escrevi-me em
sangue na tua pele,
e tu,
purulenta indefinição
de ódio na minha,...

por não perceber a
frase inconstante
da tua voz,
de mim absorveste o som,
fracionado em choro


2018/10/24

Sem título (82)

estive aqui, 
talvez,
por uma soma de todos 
os acasos com que fodi,
lembro-me de rostos 
a fecharem-se sobre si mesmos,
com o calor a estrangular 
pausadamente a 
vida de toda a maldade,
que normalmente 
pinta as ruas,...

as pessoas falavam 
por si próprias,
talvez desejando-me a 
morte com 
duas pinças,
capazes de 
me desligar 
com compasso do real,
deixando-me 
nesta confusão 
em que todos 
os dias tomo banho

2018/10/23

Não me escrevas os olhos

não me escrevas os olhos,
rastreia antes qualquer coisa quando as pupilas me sangrarem,
e em vez de cegar eu sentir todos os poros de uma pele a abrir,
deixando em mim sementes de uma poesia pueril,
onde se puseram muitas mãos a apertar o vazio,
estrangulando a criatividade de insulto que outrora tive,...

se calhar só tenho mesmo os olhos,
a restar para que mande todos ao princípio da estrada,
onde me sinto confortável para decifrar palavras feias de condescendência,
as suficientes,
se calhar,
para ser o bukowski que um dia almejei,...

até lá vou acabar qualquer coisa que aqui tenho,
e depois voltar aos livros esquálidos dos que não cuidam da saúde,
por sentirem o mar a pulsar nas veias,
em vez de sangue invisível e incoerente



2018/10/22

De um livro sem beleza

De um livro sem beleza recordam-se as pessoas inseguras. As casas mal decoradas, e com um cheiro incapaz de ser dado a conhecer pelo correr das páginas. Ficam, talvez, um ou dois choros mais profundos das crianças que nem se nos acomodam no branco dos olhos, porque nem sequer existem. Estão mal descritas. Não se vestem, só se deixam ali ficar, a olhar para o infinito com a noção de que irão desaparecer mais depressa ainda do que foram metaforizadas.
De um livro sem beleza, nasce a ideia gélida, assustadoramente enevoada, de que ler não leva a lado nenhum. De que só os fracos aceitam ler, para se distrairem o tempo suficiente para que quando dão por eles, a morte já lhes bate à porta a pedir almoço, e jantar, e depois um bilhete de ida no táxi da certeza magnanime da vida.
Vários livros sem beleza passaram pelas minhas mãos. A nenhum senti as peles lustrosas de mulheres que valham a pena. As vidas preenchidas de velhos, dissecadas em passos seguros rumo ao enobrecimento pessoal.
De um livro sem beleza, espera-se o silêncio....

2018/10/21

Intróito musical

lembrava-me de serem as horas que te
penteavam,
o tempo ganhava mãos de seda,
que te tocavam como o alegre
crescendo em Vivaldi



2018/10/20

Sociedade opressora

era daquelas coisas sem peso. Insistiam em perguntar-me por ela. Uma insignificância, quase como que um sentimento não correspondido. Poderia ter a forma daquelas rosas sem pétalas, que vão desaguar no mar depois de serem atiradas por mãos pálidas e desesperadas.
Respondi que não sabia. Antes de  sentir palavras pouco seguras a saírem-me pelos lábios, ainda hesitei. Pensei que no meio de duas palavras vestidas de mentira, podem vir acomodações ao real. Uma sucessão de pronomes pejados de indiferença por aquilo que as pessoas pensam, ou sentem... apenas o suficiente para descarnar o real ao ponto de o tornar tolerável.
Até porque nem percebia o que estava em causa. Perguntavam-me, quase como se me quisessem rodear por todos os lados, se eu sabia a diferença entre o óbvio, e o subentendido. Disse que sim, mas sem elaborar.
Até porque tenho de rasgar tudo isto, e escrever a melhor forma de matar uma pessoa...


2018/10/19

Sem título (83)

eu não gostava que em todas as minhas
tardes existisse uma demissão,
o tal entendimento complementar que
era preciso escrever,
dizer que os momentos nem passavam
se não estivesses lá,...

preferia que os passeios do mundo
se pintassem de transparências,
de morte,
em vez de tentar perceber o envelhecimento,
sem o complemento direto do teu sorriso


2018/10/18

e ao máximo denominador comum do estar aqui

e depois daquelas noites em nó,
ao fim de estradas e estradas de 
chuva em verso,
que nos tiravam a visão,
deixando nas 
bermas os equívocos 
alinhados em desilusão,...

aninhaste o fogo 
seco do amor 
aos meus pés,
razões para que 
lá fora nem 
se ouvisse o vento,
só os choros 
inconsequentes de 
quem nem nos conhece,
só ignora,...

e ao máximo 
denominador 
comum do estar aqui,
escolheste partir,
ficando para 
trás um real,
dissecado 
no bolor do 
choro sem cheiro

2018/10/17

E agora para algo completamente mau...

Apanhei o comboio à justa. Assentei os dois pés na carruagem de trás, a dos pobres e remediados, já o chefe de estação corria atrás de mim com o pau de bandeira eriçado na mão, e o apito ruçado a silvar, como uma galinha em véspera de casamento cigano. Não gostava de ficar marcado em nada, mas às vezes era mais forte. Hoje estava com pressa. Era um torpor que começava na nuca, passava pelos olhos que picavam mais que uma dor de cabeça mal curada.
Naquele dia tinha a ver com um assunto mal resolvido. Lembro-me de que tinha ficado de ajustar contas com uma pessoa, e estava com pressa para o fazer. Lá fora caía uma chuva miudinha, que deixava a linha do comboio a brilhar, como a careca de um velhote pedófilo à beira de um jardim infantil.....

2018/10/16

Sorris das folhas da vida, do momento

Post 1500 do Inatingível 2018



Frase ortodoxa de terra

não havia sol,
não havia chão remendado
a fio grosso,
de pescador,..

não havia lamuriar
da terra órfã,
desvirginada pelo homem mau,
mas havia secura,
aridez de sorrisos,...

tudo a meio tostão
por nada sobrar,
além de aldeias
a fio de esfomeados,
crianças que se consumiam
numa fome morta de coração,...

no fim,
não havia vida,
somente se espera
pelo rachar do relógio,
para não haver tempo


2018/10/15

Poema propositadamente confuso

mais que versos falhados 
e o sol no bolso,
importava que soubesses 
o período mais doloroso
 de qualquer conversa,
não conta que escrever 
bonito sirva como argumento 
para o amor,
e que da paz todos 
façamos uma ponte 
para a solidão recompensada,...

saber as horas numa 
conversa sem tema,
e cada segundo em que
 parar não significa perder,
faz da luz um refúgio 
alinhado com a paz,
e a pequenez da 
vida imaginada 


2018/10/14

Inatingível 2018 em novo crossover com o blogue 'Páginas Partilhadas'

Às vezes gosto de pensar na manhã como uma coisa que se recorta.
Encolhida a mínimos de palma de mão, circundo-a com uma tesoura ferrugenta, apurando cada forma geométrica que faz dela maleável a todos os sentidos humanos.
Acabo com justapostos triângulos, de rebordo dourado do sol de todas as vezes em que acordo com sorrisos dos que não se vendem por sonhos falsos.
Com cuidado, procuro enfià-los nos dois globos oculares, até conseguir parar em frente ao espelho, e ver-me sem o eu que dispenso há décadas.
É giro, sentir o morno da sinceridade dos princípios de dia a brotar pelo meio de cada artéria auto-bloqueada que o nosso corpo se prepara para formar.
Abro os olhos, e só assim me vejo como algo por que vale a pena lutar. Descoordenado desta pele de papel manteiga que me embrulha os ossos, fazendo do sangue caldo intenso de odores pintados de todas as cores

2018/10/13

Sem título (84)

era dele,
era minha,
era arredondada na ambição
de passar despercebida,...

anulada quando se passava naquela rua,
não dizia nada às formas
indesejadas de todas as ruas,
talvez lhe chamasse sorte,
amor meu feito morte,
que passeava pelas ruas com pés
de flores,
que cheiram mal do desnorte
de caminhar tortos,
para a solidão,...

e assim feito fadista,
enrolei a vida e pisei
o risco,
de ficar para sempre,
sem saber o nome,
do que meu já não era



2018/10/12

Poema de interior ostracizado

diziam que a história ia acabar por resolver-se,
provavelmente o velhote morreria de doença,
e a casa ficaria abandonada,
com os banquinhos de louça à porta,
e um gato partido, sem rabo e uma orelha,
quase rés-vés a estilhaçar-se no chão,...

entretanto,
o vento beijava as paredes encardidas
daquele casebre de interior,
e lá de dentro sobravam gemidos,
arremelados com latidos de cães doentes,
que fuçavam o chão à procura de comida,...

de quando em vez alguém demandava
notícias do velhote,
até que ninguém mais voltou aquele lugar,
onde só a chuva insistia em querer
rezar,....

no dia em que o gato escaqueirou-se
dentro da poça de lama mais anunciada,
e o dono da casa deu o último suspiro,
apareceram dois de fato e gravata,
a querer fazer negócio com o terreno,..

a história resolveu-se,
mas tudo ficou votado ao abandono
mais colorido possível


2018/10/11

Ela antropocêntrica

as dúvidas,
guardou-as onde nunca pensou que a luz chegasse,
disse a si mesma que teria de abdicar de perguntas, 
dizer aos outros que gostaria de uma pele áspera,
onde a espera pudesse encontrar uma morada,
pelo menos provisória,...

ao final de cada hora,
as pessoas que conhecia iriam junto de si,
querer saber o caminho da virtude,
e ela responderia com o desenho do Sol em cores somadas à morte,
anunciando assim o fim do tempo com balizas,...

iria ser a mãe da eternidade,
assim a coragem a deixasse,
e a coerência levasse a melhor sobre o terror 


2018/10/10

Um dia gostava de saber escrever assim

roberto juarroz / todos falam



Todos falam
do que encontraram no caminho.
Alguns falam também
do que não encontraram.
E uns tantos referem-se
ao que não é possível encontrar.

Mas há quem fale de um encontro
que surge de uma emboscada entre as mãos
como uma andorinha que nunca foi parte
de nenhum bando,
como um gesto secreto que recolha
a compaixão que falta nos encontros.

Todo o encontro nasce
como a água perante a sede.
O resto é uma miragem
que não chega sequer
a desconcertar o deserto.



roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018

Sem título (85)

sobre mim caíam ódios, vistos do lado de fora da vida,
as pessoas esmagavam os próprios bons sensos com apertos
inopinados,
enquanto o mundo corria
em corrimão,
 pelo meio das ruas que entortavam
com o passar dos momentos,
das contrições sem rosto,
sem caminho,....

aguardava na esquina da cidade
sem nome,
à procura de uma perspetiva
de vida para desenhar

2018/10/09

Tentativa rasca de rimar sem sucesso

quisera ser luz defronte ao rio,
em pleno fôlego com
um mar de plenitude,
desmandos de desvario,
feito assim o que me resta
de solitude,....

olhos de amor,
resquícios de ódio,
jogava de noite
com a dor,
em tom apenas prosódio,...

e o que se resta no fim,
faz de mim a frase,
nos teus olhos de cachapim,
morto ficarei sem a tua base

image


Tirado daqui





2018/10/08

Sem título (86)

por estas horas a solução estava no rasgar
da estrada,
havia minutos que era em silêncio que a rua
se escondia de um suspiro,
de duas catarses,
até de três adeus para nunca mais voltar,...

sobravam indecisões redescobertas
numa fábula sem fim,
para que as recordações dos suspirares felizes,
se tornem nome de rua
para todo o sempre


2018/10/07

Menor crença no tempo

se somos os meses que não terminam,
haja ar que nos intervalos das hesitações
nos proíba de esperar,
avançando,
com passos soltos,
para desenrolar estes receios
de sentir o sangue a viver,...

e para que valha a pena o momento
contornado com húmus,
nem sei por onde continuar a refletir,
apenas acreditar,
que um ano arredonda o tempo
em chuva

des-flor-ar:
“ empessoa:
“ Chove. Há Silêncio
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego…
Tão calma é a...


Tirado daqui

2018/10/06

Com e sem sol

talvez haja o sol,
uns desenhos sujos,
irrelevantes,
morrendo como sombras chinesas
nas paredes eternecidas,
do entardecer,...

com as cidades
a perecerem por trás da frase,
do complemento direto
destes segundos
que matam mais
que debitam,
a nascitura infelicidade
de milhões de anos
num copo de nada,...

e quando só há o breu,
a fútil certeza da desilusão,
fazes-me a mim mais mal,
que bem,...

sem sol


2018/10/05

Sim, isto que aqui anda é 'bué da bom'!!!

Pessoa no café

naquele dia parecia ver Pessoa
no fundo de uma chávena de galão,
havia um burburinho em cascata,
era o meu café de todos os dias,
com as mesmas caras,
os sorrisos comedidos escondidos por
trás dos choros em novelo dos meninos
ranhosos,
e eu absorto em pensamentos traduzíveis
só por desenho,....

as borras do café desenhavam dois aros,
e o bigode imaginava-o algures a deslizar
por entre uma poça castanha,
o empregado passava vezes sem conta a olhar
para mim,
e só me ocorria sair dali,
e ir aos Prazeres perguntar ao Ricardo Reis
se ele já tinha decidido morrer,...

a manhã acabou,
e rabisquei um poema de amor
incompreendido,
antes de pagar e sair


2018/10/04

Texto fraco, fraco

O patrão tinha acabado de despedir dez estivadores . Ninguém queria subversivos na empresa, alegava o senhor doutor. Eram homens que trabalhavam quando a sorte queria. Trocavam murmúrios com os colegas, e nem sequer perdiam tempo a deixar passar uma frase coerente por entre os lábios. As horas,
Passavam-nas a carregar sacos de ráfia cheios de trigo da cabine dos camiões, para o interior de monstruosas barrigas de navios, que depois largavam em direção ao ultramar. 
Estes homens passaram fatias incontáveis de tempo a fazer a mesma coisa. 
E um dia, dois deles, irmãos de sangue vindos da província, filhos de pais diferentes mas que juraram compromisso de amor para toda a vida quando ainda eram petizes, e mal falavam, pediram um dia para ir à terra visitar a velhota que os tinha criado. No quarto de alfama em que dormiam, receberam uma carta a dizer que a mãe de amor estava por dias. Já não comia, fazia as orações desconexas, sem sentido, e sem sequer chamar pela nossa senhora que sempre a acompanhava. Acordaram ambos que tinham de fazer o que era a obrigação que a vida lhes dava, e no serviço pediram ao capataz. 
A resposta foi a ordem para se apresentarem ao senhor doutor.  Foi tudo tão rápido, que só perceberam que tinham perdido o emprego. Os colegas que quiseram saber porquê, também foram despedidos. Lá fora, à chuva, dezenas de chefes de família, donos só da roupa do corpo e de incontáveis bocas para alimentar em casa, esperavam a oportunidade para serem eles a receberem por aquela fantasmagórica percepção de realização pessoal. 
O senhor presidente do conselho, no dia seguinte, ia brindar aquele pedaço de progresso com a sua presença. 

2018/10/03

a nossa sorte

a nossa sorte não está definida naquelas coisas que um sorriso traz. A nossa sorte serão, talvez, as partes nuas de um encontro à chuva. Com o corpo a encolher, e o mundo a parecer engolir cada pedaço de abandono que a indecisão normalmente traz.
a nossa sorte é uma minúscula no começo de uma frase. Para parecer que queremos morrer imberbes, amolecidos de tanta vontade de aspirar ao 'golgota' da existência, quando nunca sairemos do espaço de uma barata morta, de pernas para o ar, impotente perante a sua efemeridade.
a nossa sorte é esquecer o resto para compor este tapete para não sei onde.




2018/10/02

Não sei se um dia gostava de saber escrever assim,....ainda vou pensar....

joaquim manuel magalhães / despedes-te depressa destes dias


Despedes-te depressa destes dias
sem o sol que pensaste e te faria
rasgar de ti o que conheces.
Precisas da ignorância e do inútil.
O que sabes soterrou as energias
ao ar do mar onde há barcos e peixes
naturalmente, como tu não és.
Dentre as mãos como pinheiros as carícias
é uma forma de corroeres a vida.
Um espírito nocturno espreitas das coisas,
a transitória consciência encontra análogos
nas matérias, na falsidade.
Os vagarosos gestos ocupam os lugares,
a desolada observação dos factos e dos feitos.
O brilho visionário fez-se derrota,
a perfeição nos sonhos,
uma linguagem de sentido perdido.


joaquim manuel magalhães
dos enigmas
moraes editores
1976

Untados (Segunda de Outubro)

eles deixavam-se untar nos
corpos gastos de retórica,
pediam que o vento
fosse o mesmo,
que acalentava
a esperança de cada dia
 enegrecido,
só para que ao
final de um momento irrepetível,
sobrassem apenas os traços ténues
de um caminho onde só
choravam crianças,....

e caíam as peças por terminar,
os atos infundados de uma dama
das camélias opaca,
sem sentido,
afundada nas
limitações indesejadas
de um amor que
era sempre mentira,...

 no fim de cada diálogo,
voltavam a pedir para ser untados,
e os espectadores voltavam costas,
com raízes de árvores mortas
a deixar a promessa de que
nada daquilo se repetiria




Tirado daqui

2018/10/01

Partiu

Lembro-me dos dias em que achava que ela seria um equívoco. Dentro daquilo que entendia como erro admitido, e não corrigido. Ela vivia uma rotina sem sentido. Com todos os minutos contados da mesma forma, contando para o mesmo fim. Foi assim que me despertei a mim mesmo para aquela sensação. Via-a como algo impossível de descrever. Passei anos a fio a tentar perceber como todas as possibilidades encerradas naquele andar. Naquela pele deliciosamente suja de luz tímida. Como um cabelo ondulado no sentido tempestuoso à beira mar do tempo,...
me podia fazer ter vontade de especular em ficções sem sentido. Em arranhar folhas consecutivas de indecisão branca, com indefinições como esta que tento elaborar ao som da chuva que lhe embala o afastar. 
Sim, ela está a sair do meu mundo. Vai com alguém que desconheço.Leva malas, caixas, com todo um tecido que lhe deverá ter envolvido a rotina, asfixiando cada momento. Cada recordação. 
Se a perder agora, que seja para uma recordação que me esforce para nunca mais voltar.

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