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2025/04/26

Um dia gostava de saber escrever assim

 

  • Estou vivo e escrevo sol


    ao Ruy Belo


    Escrevo versos ao meio-dia

    e a morte ao sol é uma cabeleira

    que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo

    Estou vivo e escrevo sol


    Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam

    no vazio fresco

    é porque aboli todas as mentiras

    e não sou mais que este momento puro

    a coincidência perfeita

    no acto de escrever e sol


    A vertigem única da verdade em riste

    a nulidade de todas as próximas paragens

    navego para o cimo

    tombo na claridade simples

    e os objectos atiram suas faces

    e na minha língua o sol trepida


    Melhor que beber vinho é mais claro

    ser no olhar o próprio olhar

    a maravilha é este espaço aberto

    a rua

    um grito

    a grande toalha do silêncio verde


    António Ramos Rosa

2025/04/17

...e ambos ouviram Cohen

 Ah, estás aí?

O acomodado estendeu a mão,
Ofuscado pela luz,
Sentia-se baralhado pela leveza da voz,
e um insuficiente amanhecer,
que tingia de escuro as prioridades
que tinha desenhado,…

ela não respondeu,
sorriu,
pousou a mão no
ombro daquele
ser humano indefeso,
e ambos ouviram Cohen
até ao final do dia


2024/10/17

Exatamente o que eu penso e sinto

 Com os anos a morte vai-se tornando familiar.

Quero dizer não a ideia da morte, não o medo da morte: a realidade dela.
As pessoas de quem gostamos e partiram amputam-nos cruelmente de partes vivas nossas, e a sua falta obriga-nos a coxear por dentro.
Parece que sobrevivemos não aos outros mas a nós mesmos, e observamos o nosso passado como uma coisa alheia: os episódios dissolvem-se a pouco e pouco, as memórias esbatem-se, o que fomos não nos diz respeito, o que somos estreita-se.
A amplitude do futuro de outrora resume-se a um presente acanhado.
Se abrirmos a porta da rua o que se encontra é um muro.
No nosso sangue existem mais ausências do que glóbulos.
Tento recordar-me: a casa dos meus avós, a Praia das Maçãs, episódios antigos, as horas gordas do relógio de parede ecoando na sala.
Deve ser tudo normal, certamente é tudo normal e não entendo. Venderam a quinta, o mundo encheu-se de pessoa.
Fomos tão poucos, dantes!
Escondia-me num canteiro a fumar, as nuvens passavam sobre as copas.
As flores nasciam, perfeitas, dos dedos do senhor José. Esqueceste-te das estátuas com o nome das estações, do roseiral?
Do mês de junho em que tudo era verde, nítido, claro?
De trazeres pilhas de livros para o jardim?
Que Antonio eras tu?
Dos versinhos que escrevias?
De ires ser escritor?
Tão fácil ser escritor, não é verdade?
Tão fácil respirar.
António Lobo Antunes

2024/09/22

Manuel Tiago redux

                                                                             Tirado daqui

Ao longe sentia-se o magnetismo,

Da estrela de seis pontas,...


Levava as botas cardadas,

Um casaco rasgado e a alma,

O que poderia ser uma alma mas na qual politicamente nem acreditava,

A dizer-lhe volta para trás,

Viver para os outros tira anos de vida,

Bom é o egoísmo empacotado,...


E sem saber,

Enquanto uma chuva hexagonal começava a desconstruir o chão,

Era alinhado por um escritor de ficção,...


Seria o melhor resistente político,

Pelo menos o possível 

2024/08/03

Um dia gostava de saber escrever assim

 O SILÊNCIO

Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntar o que significam.
Mas o silêncio de onde as palavras saíram
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.
Nuno Júdice, 'A matéria do poema

2024/07/08

Lisboa e uma dor de cabeça

foi este o meu lugar,
o gajo estava farto de
Bukowskis,
ainda tolerava ruis Belos
escritos como ele quisesse,
mas eu queria estar aqui,....

o céu abria-se,
e o sol trazia coisas esquisitas,
quase sedições,
à Lisboa de onde eu estava,....

uma dor de cabeça,
um entorpecimento
das mãos,
e o meu lugar era de facto aqui,....

antes que chovesse,
ainda assim,
procurei abrigo junto ao
Cais das Colunas

                                                                          Tirado daqui

2024/03/23

Viver para sempre

 Se vocês conseguirem,

As portas abrem-se,

Malraux descontrola-se,

Haverá sangue como troféu de consolação,...


Os desníveis vão acentuar-se,

Será noite mais cedo neste dia,

Basta que tentem,...


E um diamante pequeno,

Quase imperceptível,

Penderá do dedo disforme do louco da terra,....


Se conseguirem,

Haverá prémios no arregaçar de mangas dos trabalhadores,...


E não faz mal,

Já entardece por entre os dois pombos que agora me fazem refletir 



2024/03/08

Um dia gostava de saber escrever assim

manuel antónio pina / o braço 


O braço que falta ao mendigo é que o sustenta –
É ele que na sombra mexe os cordelinhos
De milhões misteriosos de dedinhos
Com que o mendigo se coça e se alimenta.

 
                            O cego que toca violino na esqui-
                            na da Rua de Santa Teresa e da Ga-
                            leria de Paris

 
 
Entre o cego e a música é que o braço se coloca,
Tão célere que o cego não entende
Dos braços da música que toca
Qual o que abraça qual o que ele estende.

2024/01/06

Encontrei um auto-retrato. É só substituir o espanhol pelo português...

 Roubado daqui

Blas de Otero

 Notícias de todo o mundo



Aos quarenta e sete anos da minha idade
dá medo dizê-lo, sou só um poeta espanhol
(dão medo os anos, isto de poeta, e Espanha)
de meados do século XX. E é tudo.
Dinheiro? Carinho é o que desejo,
diz a copla. Aplausos? Sim, mas não o ensejo.
Saúde? A suficiente. Reputação?
Má. Mas cabelo sem moderação.
Dá medo pensá-lo, no entanto apenas me lêem
os analfabetos, não os trabalhadores, ou
as crianças.
Mas já me leram. Agora ando a aprender
a escrever, mudei de classe,
precisava de uma máquina de fazer versos,
perdão, de uns versos para a máquina
e, sobretudo, paz,
preciso de paz para continuar a lutar
contra o medo,
para brindar no meio da praça
e abrir o porvir de par em par,
para plantar uma árvore
no meio do mundo,
para dizer "bom dia" sem enganar ninguém,
"bom dia, carteiro", e que me entregue uma carta
em branco, de onde voe uma pomba.

2023/11/06

Um dia gostava de saber escrever assim

 Não darei o teu nome


“ Não darei o teu nome à minha sede
de possuir os céus azuis sem fim,
Nem à vertigem súbita em que morro
Quando o vento da noite me atravessa.

Não darei o teu nome à limpidez
De certas horas puras que perdi,
Nem às imagens de oiro que imagino,
Nem a nenhuma coisa que sonhei.

Pois tudo isso é só a minha vida,
Exalação da terra, flor da terra,
Fruto pesado, leite e sabor.

Mesmo no azul extremo da distância,
Lá onde as cores todas se dissolvem,
O que me chama é só a minha vida.”

David M. Ferreira

2023/11/01

Novembrando a 10 de junho

 


Escritores russos em barda,

Um desejo interminável de literatura de estepes,

Enquanto o chão rangia,

A água para o chá ganhava vida e corpo próprios,

O trânsito na rádio se imiscuia pelas paredes,...



As mães desesperadas de tolstoi,

O medo preso de soljenitsine,

Tanto verbo gasto por ribakov,

Escritores russos juntos abrem a porta de casa,

E apontam a vida lá fora

2023/08/02

Um dia gostava de saber escrever assim

 Eugénio de Andrade/O copo de água 


Devia ser nos começos do verão, os inumeráveis jacarandás de Jerez de la Frontera estavam em flor. Nos pátios da luxuosa vivenda onde me haviam instalado (que o Governo confiscara a um riquíssimo produtor de vinhos da região por fraude fiscal, agora destinada a hospedar gente da cultura), os repuxos erguiam os seus irisados fios de água para logo os deixar cair molemente na face doutras águas cativas em grandes taças de mármore, onde já flutuavam uma ou outra flor de jacarandá. Aquele rumor, a que se misturava às vezes algum canto de ave, parecia-me então a música do paraíso.

 

Durante aqueles dias, eu ficava por ali sentado toda a manhã com os meus papéis e um copo de água, que o caseiro me punha em cima da mesa, um copo de cristal com grinaldas de flores gravadas na parte superior, poucas coisas haverá tão bonitas como um copo de água fresca no verão, mesmo quando o vidro não tem a o brilho e a transparência do cristal. O caseiro, cuja voz vinda doutro pátio me prendia a atenção com cantares andaluzes muito ornamentados, também colocava cuidadosamente à noite, na minha mesa de cabeceira, um copo de água em tudo semelhante àquele de que falei. E como lhe referisse a beleza, ele ofereceu-me, ao partir, o que estava no meu quarto, como lembrança da minha passagem pela casa. É esse copo que, desde então – e já lá vão tantos anos! – tenho à cabeceira, e sempre com água fresca, como se o verão e a luz dos jacarandás durassem eternamente.

 

 

Foz do Douro, 24.3.2001

 

 

 

eugénio de andrade

inimigo rumor número 14

1º semestre 2003

livros cotovia

2003

2023/05/23

como Al Berto a rever o amor engaiolado

 


a sensação de prurido
antes de se fazer amor,
a lonjura de uma desculpa,
todas as noites as mesmas cartas
resumiam a decepção,
e os olhos que as não liam,...

todas as noites chamava
com uma garganta muda,
como Al Berto a rever o amor
engaiolado,
e todas as noites esperava
sem fim que respondesses,....

havia cartas,
pensava nas cartas que
havia a provar que,
se a espera fosse a certa,
tu serias incompleta,
como uma mão cheia de ar
que engilha,
e outra de fogo que se despede de um sorriso