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2025/04/26

Um dia gostava de saber escrever assim

 

  • Estou vivo e escrevo sol


    ao Ruy Belo


    Escrevo versos ao meio-dia

    e a morte ao sol é uma cabeleira

    que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo

    Estou vivo e escrevo sol


    Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam

    no vazio fresco

    é porque aboli todas as mentiras

    e não sou mais que este momento puro

    a coincidência perfeita

    no acto de escrever e sol


    A vertigem única da verdade em riste

    a nulidade de todas as próximas paragens

    navego para o cimo

    tombo na claridade simples

    e os objectos atiram suas faces

    e na minha língua o sol trepida


    Melhor que beber vinho é mais claro

    ser no olhar o próprio olhar

    a maravilha é este espaço aberto

    a rua

    um grito

    a grande toalha do silêncio verde


    António Ramos Rosa

2024/08/03

Um dia gostava de saber escrever assim

 O SILÊNCIO

Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntar o que significam.
Mas o silêncio de onde as palavras saíram
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.
Nuno Júdice, 'A matéria do poema

2023/11/06

Um dia gostava de saber escrever assim

 Não darei o teu nome


“ Não darei o teu nome à minha sede
de possuir os céus azuis sem fim,
Nem à vertigem súbita em que morro
Quando o vento da noite me atravessa.

Não darei o teu nome à limpidez
De certas horas puras que perdi,
Nem às imagens de oiro que imagino,
Nem a nenhuma coisa que sonhei.

Pois tudo isso é só a minha vida,
Exalação da terra, flor da terra,
Fruto pesado, leite e sabor.

Mesmo no azul extremo da distância,
Lá onde as cores todas se dissolvem,
O que me chama é só a minha vida.”

David M. Ferreira

2023/08/02

Um dia gostava de saber escrever assim

 Eugénio de Andrade/O copo de água 


Devia ser nos começos do verão, os inumeráveis jacarandás de Jerez de la Frontera estavam em flor. Nos pátios da luxuosa vivenda onde me haviam instalado (que o Governo confiscara a um riquíssimo produtor de vinhos da região por fraude fiscal, agora destinada a hospedar gente da cultura), os repuxos erguiam os seus irisados fios de água para logo os deixar cair molemente na face doutras águas cativas em grandes taças de mármore, onde já flutuavam uma ou outra flor de jacarandá. Aquele rumor, a que se misturava às vezes algum canto de ave, parecia-me então a música do paraíso.

 

Durante aqueles dias, eu ficava por ali sentado toda a manhã com os meus papéis e um copo de água, que o caseiro me punha em cima da mesa, um copo de cristal com grinaldas de flores gravadas na parte superior, poucas coisas haverá tão bonitas como um copo de água fresca no verão, mesmo quando o vidro não tem a o brilho e a transparência do cristal. O caseiro, cuja voz vinda doutro pátio me prendia a atenção com cantares andaluzes muito ornamentados, também colocava cuidadosamente à noite, na minha mesa de cabeceira, um copo de água em tudo semelhante àquele de que falei. E como lhe referisse a beleza, ele ofereceu-me, ao partir, o que estava no meu quarto, como lembrança da minha passagem pela casa. É esse copo que, desde então – e já lá vão tantos anos! – tenho à cabeceira, e sempre com água fresca, como se o verão e a luz dos jacarandás durassem eternamente.

 

 

Foz do Douro, 24.3.2001

 

 

 

eugénio de andrade

inimigo rumor número 14

1º semestre 2003

livros cotovia

2003

2023/02/04

Um dia gostava de saber escrever assim

 

maria teresa horta / por dentro da alegria

 
 
Já dentro da alegria
novamente a tristeza
 
A espuma do escuro
onde os ombros se acolhem
 
Os escolhos – os escombros
o dilúvio obscuro?
 
Que tempo me importa
onde os outros não olham?
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
educação sentimental
dom quixote
2009

2022/12/16

Um dia gostava de saber escrever assim

 FIVE O'CLOCK TEAR


Coisa tão triste aqui esta mulher
com seus dedos pousados no deserto dos joelhos
com seus olhos voando devagar sobre a mesa
para pousar no talher
Coisa mais triste o seu vaivém macio
p'ra não amachucar uma invisível flora
que cresce na penumbra
dos velhos corredores desta casa onde mora

Que triste o seu entrar de novo nesta sala
que triste a sua chávena
e o gesto de pegá-la

E que triste e que triste a cadeira amarela
de onde se ergue um sossego um sossego infinito
que é apenas de vê-la
e por isso esquisito

E que tristes de súbito os seus pés nos sapatos
seus seios seus cabelos o seu corpo inclinado
o álbum a mesinha as manchas dos retratos

E que infinitamente triste triste
o selo do silêncio
do silêncio colado ao papel das paredes
da sala digo cela
em que comigo a vedes

Mas que infinitamente ainda mais triste triste
a chávena pousada
e o olhar confortando uma flor já esquecida
do sol
do ar
lá de fora
(da vida)
numa jarra parada

A Palavra O Açoite (1977)
Emanuel Félix

2022/09/14

Um dia gostava de saber escrever assim

pier paolo pasolini / ao príncipe

 

Se voltar o Sol, se cair o crepúsculo,

     se a noite tiver sabor de noites futuras,
se uma tarde de chuva parece regressar
     de tempos muito amados e jamais
                                               possuídos,
eu já não fico feliz, nem disso retiro prazer ou
                                                   sofrimento
     já não sinto, diante de mim, a vida inteira…
Para se ser poeta, é preciso ter muito tempo
     Horas e horas de solidão são a única
                                                        maneira
de dar forma a alguma coisa, que é força,
                                                     abandono,
     vício, liberdade, de dar estilo ao caos.
Eu tempo já tenho pouco: por culpa da morte
     que avança, no ocaso da juventude.
Mas também por culpa deste nosso mundo
                                                        humano,
     que aos pobres tira o pão, aos poetas a paz.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022

2022/05/14

Um dia gostava de saber escrever assim

 

miguel torga / desfecho

 
 
Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te…
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)
 
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente…
 
E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tua não usas,
Sempre silencioso na agressão.
 
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia…
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.
 
 
 
miguel torga
câmara ardente
1962

2022/04/17

Um dia gostava de saber escrever assim

manuel antónio pina / alguém atrás de ti

 
 
Como no sonho dum sonho, arde
na mão fechada de Deus o que passou.
É cada vez mais tarde
onde o que eu fui sou.
 
Que coisa morreu
na minha infância
e está lá a ser eu?
a lâmpada do quarto? A criança?
 
Em quem tudo isto
a si próprio se sente?
Também aquele que escreve
é escrito para sempre.
 
 
 
manuel antónio pina
nenhum sítio
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992
 

2022/03/02

Um dia gostava de saber escrever assim

 Bolero do coronel sensível que fez amor em Monsanto

ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Eu que me comovo
Por tudo e por nada
Deixei-te parada
Na berma da estrada
Usei o teu corpo
Paguei o teu preço
Esqueci o teu nome
Limpei-me com o lenço
Olhei-te a cintura
De pé no alcatrão
Levantei-te as saias
Deitei-te no banco
Num bosque de faias
De mala na mão
Nem sequer falaste
Nem sequer beijaste
Nem sequer gemeste,
Mordeste, abraçaste
Quinhentos escudos
Foi o que disseste
Tinhas quinze anos
Dezasseis, dezassete
Cheiravas a mato
À sopa dos pobres
A infância sem quarto
A suor, a chiclete
Saíste do carro
Alisando a blusa
Espiei da janela
Rosto de aguarela
Coxa em semifusa
Soltei o travão
Voltei para casa
De chaves na mão
Sobrancelha em asa
Disse: fiz serão
Ao filho e à mulher
Repeti a fruta
Acabei a ceia
Larguei o talher
Estendi-me na cama
De ouvido à escuta
E perna cruzada
Que de olhos em chama
Só tinha na ideia
Teu corpo parado
Na berma da estrada
Eu que me comovo
Por tudo e por nada

2022/02/04

Um dia gostava de saber escrever assim

 

nuno júdice / fevereiro

 
 
A fotografia obscurece o fundo;
nenhum dos sinais do princípio me traz
o conforto de ser, nem
abre a última porta, por
onde passaram os exércitos da noite.
Mas vejo melhor: e
descubro-te, a um canto,
debruçada da varanda – como
se espreitasses o mar verde da memória,
ou procurasses a própria definição
da água, entre o azul
e o negro.
É, de facto, a cor
dos teus olhos,
como a lembro. Encostavas-te
à parede branca, contra
o sol; e a luz não te atravessava
os cabelos com que protegias
o rosto.
 
Desse fundo de minúsculas
particularidades, a tua presença é
a mais evidente. Deixo que
a sombra desapareça de toda a parte,
da parede até ao próprio horizonte; e
é como se saísses de dentro
do tempo, e nos entrássemos,
por instantes, sob um céu de nuvens esburacadas
como as tábuas comidas
pelo sal.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997

2022/01/29

Um dia gostava de saber escrever assim

 As coisas que mais prazer me deram na vida

Agrafar, carimbar, cortar uma página pelo picotado, fazer buraquinhos numa folha com aquela maquineta de fazer buraquinhos, o palrar de um bebé, calar de súbito o som a meio de uma ária de ópera, esmagar as bolhinhas de uma folha de plástico transparente, ver da janela, lá em baixo, o primeiro pássaro da manhã, olhar o retrato do Papa Inocêncio de Velázquez, meter na boca um pé de criança de três meses, uma finta de Garrincha na televisão, o sorriso súbito de certas mulheres, um sino de aldeia ao fim da tarde, as luzes de Beja à noite na planície, a Serra da Estrela vista da varanda dos meus avós quando eu tinha cinco anos, a minha filha Joana, pequenina, a desenhar a sua primeira árvore, o meu avô a fazer-me uma festa comigo quase a adormecer, o tenente, quando eu era cadete, a ordenar a Marcha lento e à vontade, um pirilampo no quintal a meio da noite, a voz da minha mãe a recitar António Nobre, um gato caminhando devagarinho no muro da buganvília, montar uma zebra de pau no carrossel do oito, dizer gosto de ti para um rosto que aumenta, os olhos azuis da Avó Querida quando me chamava meu amor, agrafar mais, carimbar mais, uma mulher a murmurar Meu Deus na almofada, o pneu afinal não ter furo nenhum, o médico junto à minha cama Vou dar-lhe alta, um falcão a passar junto à janela, o guardanapo com uma rã a saltar ao eixo, começar a ver o fundo do prato quando me davam sopa, beber água da bilha na casa de Nelas, a campainha do recreio a meio de uma frase do professor de Matemática, a primeira vez que dancei de cara encostada com uma menina de treze anos também, o palhaço que me apertou a mão no circo, a tia Madalena para mim Estou aqui filho comigo com a tuberculose, o raio verde no Caramulo, agrafar mais, carimbar mais, vestir a camisola do Benfica aos quinze anos no primeiro treino, as Variações Goldberg, chegar da mata em Angola, os primeiros passos da minha filha Zézinha, eu a ensinar a Isabel a ler, o meu primo António a explicar-me Se a mãe sêsse o pai puzia gravata, um abraço do meu tio João Maria, o meu pai a deixar–me ganhar-lhe uma corrida, o meu irmão Pedro a contar Já vou no Pardal de regresso de uma aula de Catequese sobre o Espírito Santo, o primo Alfredo que me levantava acima da sua cabeça e eu maior do que toda a família, a minha mãe perfumada com Chanel número cinco, a Gija a coçar-me as costas antes de me vestir o pijama, a professora de Português, no primeiro ano do liceu, a apontar-me à turma Este menino vai ser um grande escritor e eu feliz, a primeira vez que li A Ruiva de Fialho de Almeida, o sabor da minha boca depois de um rebuçado de hortelã pimenta, a cor do mar da Praia das Maçãs às seis da tarde, receber uma carta de Céline quando lhe escrevi aos quinze anos, o dia em que o Cifra me veio dizer que tinha uma filha e fui chorar de felicidade e raiva para o arame farpado, os meus pais terem-me encontrado quando me perdi em Veneza aos sete anos junto a um dos leões de pedra na Praça de São Marcos, o meu avô a murmurar Meu netinho acariciando-me o pescoço, beber água da bilha, o primeiro dente de leite que descobri de manhã na almofada, a esperança de voltar a ler As Aventuras De Dona Redonda E Da Sua Gente, a minha pilinha de repente grande e eu cheio de orgulho e vergonha, com a minha mãe a fingir que não via, o tio Joaquim a levar-me até aos Correios, na Beira Alta, no quadro da bicicleta, o palhaço pobre que me deu um passou bem no circo, comer cocada de Belém do Pará feita pela tia Isabel, eu em Paris à procura da cegonha que me tinha trazido dali para Lisboa sete anos antes: ainda não perdi a esperança de a encontrar e de certeza que ela se lembra de mim, acho eu. Ter feito chichi em Nova Iorque ao lado de Mickey Rooney. Cortar, mal acabe isto, todas as páginas do bloco pelo picotado. Acho que devo ter por aí uma dessas coisas de fazer buraquinhos: que mais pode um homem desejar?
António Lobo Antunes
(Crónica publicada na VISÃO 1289 de 16 de novembro de 2017)

2021/04/23

Um dia gostava de saber escrever assim

 Eu procurei e era vapor ou sonho

e era o mundo, o rumor do estio
com os seus barcos de folhagem entre as pedras
e o sol por sobre os muros, a linguagem
dos gestos quase imóveis no ardor
monótono e sombrio de uma brancura
que vencia o tempo e era o ombro
e o seio da terra entre o verde e a cinza.
Eu procurava e recebia o sopro
de um fogo em labirintos áridos
e a violência reunia-se num flanco
vermelho, companheira
que ardia adormecida e se elevava
sem sobressaltos à nudez do cimo.
Era como se a terra amasse o sonho
e com a mão de fogo e a mão de água
desenhasse o instante da primeira
alegria divina. Eu recebia
as formas que se abriam e encerravam
em círculos vagarosos de uma matéria pura.

António Ramos Rosa, ‘As duas mãos da terra

2021/04/16

Um dia gostava de saber escrever assim

 

cesare pavese / trabalhar cansa

 
Atravessar uma rua para fugir de casa
só um rapaz o faz, mas este homem que vagueia
todo o dia pelas ruas já não é um rapaz
e não foge de casa.
 
                                                                     Há no Verão
tardes em que até as praças ficam vazias, estendidas
ao sol que vai pôr-se, e este homem que chega
por uma avenida de árvores inúteis para.
Vale a pena ser-se só, para se estar cada vez mais sozinho?
Percorrê-las apenas – as praças e as ruas
estão vazias. Havia que parar uma mulher
e falar-lhe e convencê-la a viverem junto.
Doutro modo fala-se sozinho. É por isso que às vezes
vem abordar-nos o bêbado nocturno
e conta os projectos de toda a vida.
 
Não é certamente ficando à espera na praça deserta
que se encontra alguém, mas quem anda pelas ruas
de vez em quando para. Se fossem dois,
mesmo a andar pelas ruas, a casa seria
onde está essa mulher e valeria a pena.
De noite a praça volta a ficar deserta
e este homem que passa não vê as casas
nem as luzes inúteis, já não levanta olhos:
sente apenas o empedrado, que outros homens fizeram
com mãos calejadas, como são as suas.
 
Não é justo ficar na praça deserta.
Anda certamente na rua aquela mulher
que, rogada, havia de querer dar uma mão à casa.

2021/04/07

Um dia gostava de saber escrever assim

 

josé gomes ferreira / cabaré

  
III
 
Perto das árvores
sob as estrelas
olho com orgulho para o céu
e sinto que pertenço ao universo.
 
A minha carne é de terra,
os olhos são de terra
e a minh’ alma, um pássaro sem corpo…
 
mas junto de ti,
no meio destas flores de papel
perfumadas de música,
sinto-me tímido e infeliz,
a tropeçar no corpo inútil.
 
E apetece-me não viver,
mas apenas existir.
Ser uma coisa qualquer
esquecida de criar.
 
 
 
 
josé gomes ferreira
cabaré 1932
poesia I
portugália
1972

2021/03/26

Um dia gostava de saber escrever assim

 

herberto helder / as imagens

 
 
[…]
 
Num país estrangeiro, ao norte, cercados pela noite onde a neve palpita friamente.
 
O ruído chega ao quarto como um vapor ligeiro, indistintamente iluminado.
 
Falando baixo, enquanto a neve desliza pela janela e um comboio passa, brutal.
 
Isto ao mesmo tempo que a noite, a neve e o rumor.
 
E a conversa interrompe-se, tendo ficado pelo meio uma qualquer palavra, com sentido, essa também, porque todas as palavras eram animadas de uma inspiração capital.
 
Era tudo terrivelmente importante.
 
Tudo é importante, enquanto a noite cria o seu labirinto e o quarto se desloca para o coração do labirinto.
 
Estamos inclinados um para o outro, por dentro, e eu sinto uma vertigem leve, como se soubesse que o chão poderia não ser completamente seguro, e o abismo sempre prometido se fosse revelar.
 
O amado e terrível abismo.
 
[…]
 
 
herberto helder
apresentação do rosto
as imagens
porto editora
2020

2021/03/08

Um dia gostava de saber escrever assim

 

pier paolo pasolini / o pranto da escavadora

 
 
I
 
Amar, conhecer
é o que conta, não ter amado,
ou ter conhecido. Angustia
 
viver de um amor passado.
A alma já não cresce.
Neste calor encantado
 
da noite profunda, aqui,
entre os meandros do rio e as visões
adormecidas da cidade constelada de luzes,
 
onde ecoam ainda mil vidas,
o desamor, o mistério, e a miséria
dos sentidos tornam-me hostis
 
as formas do mundo que, até ontem,
eram a minha razão de existir.
Triste, cansado, volto para casa,
 
por negros largos de mercado, tristes
ruas em redor do porto fluvial,
por entre barracas e armazéns que se misturam
 
aos últimos campos. Aqui reina um silêncio
de morte: mas, mais em baixo, na avenida Marconi,
ou na estação de Trastevere, a noite
 
parece ainda amena. Para os seus bairros,
para os seus subúrbios, regressam em motas
ligeiras – de fato-macaco ou calças
 
de trabalho, mas cheios de um ardor festivo –
os jovens, com um companheiro no selim,
rindo, sujos. Os últimos fregueses
 
conversam, de pé, em altos gritos,
aqui e ali, na noite, às mesas
das tascas ainda iluminadas e quase vazias.
 
Magnífica e mísera cidade,
que me ensinaste o que os homens,
alegres e ferozes, aprendem em crianças,
 
as pequenas coisas em que a grandeza calma
da vida se descobre, como, por exemplo,
andar, duro e lesto, entre a multidão
 
das ruas, dirigir-se a outro homem
sem tremer, não ter vergonha
de verificar o dinheiro contado
 
com dedos lentos pelo empregado
que foge, suando, rente às fachadas
numa cor eterna de Verão;
 
defender-me, atacar, ter
o mundo diante dos olhos e não
apenas o coração, compreender
 
que poucos conhecem as paixões
em que vivi:
que, não sendo meus irmãos, são, porém,
 
meus irmãos, porque sentem, justamente,
paixões de homens
que, alegres, inconscientes, inteiros,
 
vivem de experiências
que nunca vivi. Maravilhosa e mísera
cidade que me fizeste viver
 
a experiência dessa vida
ignorada: até me fazeres descobrir
o que, em cada um, era o mundo.
 
Uma lua agonizando no silêncio
que dela vive alveja em violentos
clarões, que, miseramente, na terra
 
onde a vida se cala, nas belas avenidas,
nas velhas ruelas, cegam, mas não iluminam,
enquanto, lá em cima, farrapos de nuvens
 
quentes as reflectem até ao infinito.
É a noite mais bela do Verão.
O Trastevere, no seu cheiro a palha
 
de velhos estábulos, a pensões
vazias, ainda não dorme.
Nas esquinas escuras, nas pacatas paredes
 
ecoam rumores encantados.
Homens e rapazes regressam a casa
– sob festões de luzes que são agora o sol –
 
vão para os seus becos, pejados
de escuridão e lixo, naquele passo brando
que mais fundo se cravava na minha alma
 
quando amava realmente, quando realmente
queria compreender.
E, como então, desaparecem, cantando.
 
 
 
pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005

2021/02/19

Um dia gostava de saber escrever assim

 

manuel antónio pina / a quarta porta

 
 
É a solidão
o que o coração procura,
como poderei não
saber o que não sei?
 
Estou cada vez mais longe de qualquer coisa,
regressarei alguma vez
a tudo o que há-de vir?
O que está atrás de ti
 
é a tua imagem
que o Futuro persegue.
Este é um lado de tudo
e o outro é o mesmo e o outro.
 
 
 
 
manuel antónio pina
o que está atrás de ti
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
201