2024/10/05

Viagem a Lisboa

 Nessa noite não jantámos. A fome era escassa, e optámos por sair do hotel, aquele sitio poucochinho e indecoroso que tinhamos escolhido sem qualquer certeza, e fomos de mão dada, apoiados um no outro e na falta de vontade e de explicação que sentiamos, assistir a um concerto de música de câmara na Sé de Lisboa. As ruas estavam escuras. Aliás, uma espreitadela do miradouro de santa luzia mostrava que a lua estava tímida, recolhida em roupas de nuvens por cima do namorado Tejo. Cruzamo-nos com gente estranhamente parecida connosco. Um casal cabisbaixo, que parecia contar os quarteirões que faltavam até chegar ao alojamento local de circunstância. Ela com um sobretudo maltrapilho, vários números acima do seu, e claramente deslocado para a noite a anunciar verão daquele dealbar de Junho. Escondia o cabelo, que de relance me pareceu alourado, num chapéu com forma de candeeiro de pensão antiga. Ele não tinha muito que desvendar. Procurava um sitio que o abrigasse dela, como os olhos de vagalume o mostravam. Estava decidido a gravar tudo o que se cruzasse connosco, até passarmos as portas amplas da Sé. Mas a noite não nos queria revelar muito. Parámos só para um café, num daqueles espaços de página dois de revista que Lisboa, a nova Lisboa dos escaparates turísticos do mundo, se esforçava agora por mostrar. Fomos servidos por um jovem imberbe, um nómada, não sei se digital, que se esforçava por esconder o seu desconhecimento total da lingua portuguesa, com um telemóvel estrategicamente ocultado no balcão, com um qualquer tradutor ligado sem que os clientes o pudessem perceber. A bica sabia a princípio. Olhei para ela, sorrimos, e nem precisámos de o dizer um ao outro. De regresso à rua, ja estávamos próximos. A imponência da sé vestia-se de bruma noturna, com os sinos a marcarem a hora certa para o inicio do evento. Pareceu-me bem composto de gente. A cidade, além de renascida para o seu novo sustento do turismo, revelava lentamente uma intelectualidade, não sei se de circunstância ou não, que não me agradava. Sou sincero. Não gosto de manifestações espontâneas de falsidade. Mas habituava-me a ela. Cruzámos finalmente as portas sempre frondosas da casa mãe da cidade, e escolhemos um local junto a um capitel de decoração florida. A noite começava bucólica...

                                                                                  Tirado daqui

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