2024/10/02

O rato

 Começou por ser um ponto insignificante. Mas à medida que se aproximava, ganhava contornos. Os olhos esquivos, inquisidores, que brilhavam como vagalumes na noite de extertor que era sempre aquela. Com dificuldade, percebia os contornos do seu corpo ágil; pêlo luzidio e eriçado, cauda empinada, à procura do melhor e pior que a escuridão tinha para oferecer. Aproximava-se do lampião da esquina, cheirava até mais não atento a ameaças, e ao mesmo tempo às ofertas que a noite tinha para lhe oferecer. Era o meu entretém em cada noite. Assumia a minha solidão a olhar para aquele bicho. 

Chamava-o meu, por vezes com todas as forças que tinha. A luz do seu desespero era a minha. A vontade férrea com que o agarrava à minha loucura de me manter acordado, longe do que as sinapses do cérebro me traziam nos sonhos. Vi-o, vez após vez, escapar a predadores que a noite traz. Assustei-me, sem nunca o conseguir assumir como meu. Fazer algo que pudesse mudar a instabilidade da vida daquela criatura. 

Desesperava por noticias dele sempre que não aparecia. Sorria ao tentar dizer a mim mesmo que a sua racionalidade era apenas a suficiente para perceber que eu o observava a cada noite. Estive perto de contar às poucas pessoas da minha vida sobre, no fundo, aquilo que se tratava. A minha relação com um rato. 

Um vivaço e fugaz rato, que, tal como os seus antepassados, e os que num futuro próximo seguissem os seus passos, teria uma existência curta. Mas a daquela criatura, daqueles dois pares de patas, olhos luzidios, e temperamento de ser desesperadamente inteligente, era minha. Só minha...

                                                                        Tirado daqui

Fotografia de Natalia Drepina

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