2024/10/18

...as escolhas que tinham de ser feitas


                                                                                  Tirado daqui

À minha espera estavam as mesmas pessoas de sempre. A dona Sofia, a velhota simpática do primeiro andar, que tinha sempre flores para acompanharem o meu sorriso. O vitorino, o apaixonado da dona Sofia. Sim, vitorino com vê pequeno porque ele próprio o pedia. Oitenta e sete anos de uma vida incompleta, já que era o primeiro a dizer aos outros que ainda lhe faltava ser ele mesmo. E às vezes a Lucrécia, naquele dia não pois supostamente estava adoentada. Era a artista do prédio. Tinha vivido em tantos sítios do mundo, a ponto de ser a pessoa mais desapegada que conhecia. Eu estava a chegar do estrangeiro. Estive fora semanas, por enquanto não digo onde, e regressava antes do tempo. A minha avó, último elo de uma família que já fora extensa, mas que nos ultimos anos se estava a consumir como a chama de uma vela, estava internada. Chamaram-me dizendo que ela queria ver-me, e percebi que estava prestes a entrar num recomeço. Vi-me com cinco anos, pela mão da minha avó, com um balão encarnado atado ao pulso, a olhar para um enorme navio colorido a entrar pela barra do Tejo dentro, num dia quente de sol. Era feliz na altura. Ela existia para me completar, e ser o meu amparo em todos os momentos menos bons. Fechei os olhos com mais força ainda, e vi-me a partir umas semanas antes. Ela nem me olhou. Permaneceu sentada no cadeirão castanho e gasto de napa preta, que sempre tinha sido o dela, e onde tantas vezes eu dormi no colo salvador daquela mulher. Agora voltava uma pessoa diferente, provavelmente para me despedir dela. E sentia-me triste. Despido de alma e de sentido. Mas capaz, por obrigação e por amor, de fazer as escolhas que tinham de ser feitas.

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