2007/12/25

Sonho II

Martelo, escopro, pregos de caixão, uma laje de mármore 10 por 25 cm. Durante 60 dias sentei-me no quintal da minha casa, debaixo da velha figueira que o meu avô Aníbal tinha plantado, com todo este material à minha frente. Esta mania durou exactamente dois meses. E tudo começou com um sonho. Lembro-me que o tive depois de um jantar numa tasca do bairro alto. Em Julho, às 10 e meia da noite, com 35 graus de temperatura, pedi ao dono daquele pardieiro que me servisse uma feijjoada à transmontana.
Estava de férias há apenas dois dias e, sinceramente, não sei qual foi a pancada que me deu para fazer aquilo. Mas fiz. Como acompanhamento, mandei que colocassem à minha frente do prato três taças de vinho do barril. Em precisamente 22 minutos e 40 segundos comi e bebi tudo. Saí da tasca, meti-me no carro, guiei até ao centro de Marvila, entrei em casa, e deitei-me. Garanto que em todo este percurso me senti como morto.
A cabeça vazia, a cara branca como a cal, os braços e as pernas hirtos. Acho que adormeci logo. Ah, tapei-me com uma manta de lã, o que nem me pareceu um pecado. O sonho chegou, mais rápido que um estalar de dedos. Se bem me lembro, os meus neuroniozinhos fizeram-me viajar até ao Panteão Nacional. Caminhava sozinho pelo meio dos tumulos dos grandes nacionais.
De repente, um banco castanho, pequeno, surgiu perante mim, e quase me fez cair. Equilibrei-me. Só então olhei para mim mesmo, e reparei que estava nu. Não me preocupei minimamente com isso. Aliás, até me obriguei a mim mesmo a sentar-me no banco, de cabeça baixa. Segundos depois levantei os olhos, e li. Amália Rodrigues, Julho-1920; Maio 1999.
A banda sonora entrou neste preciso momento. Até hoje, estou para perceber como um cérebro que eu sempre considerei mediano, conseguiu proporcionar-me uma experiencia destas. Não, não foi o Povo que Lavas no Rio que me embalou. Nem muito menos o Fado dos Caracolinhos. Motorhead, Ace of Spades.
Uma musica da minha infancia, a acompanhar-me naquilo que parecia ser a antecâmara da morte. Senti-me tão bem a ponto de renegar convicções de anos, e pedir a Deus que não me deixasse acordar. Alguém queria que eu me transformasse no ladrilhador da memória portuguesa. Senti-me voltar à vida. Lutei com todas as forças para o eviyar. Não tinha ainda chegado a minha hora. Acordei. Apesar do calor, apalpei cada centimetro do corpo, e não senti uma única gota de suor.
04h30. Levantei-me, esperei pelo raiar do sol, fui a um armazém de ferragens comprar um martelo, um escopro, um quilo de pregos de caixão. Perto de Sintra, encontrei uma laje de mármore. À hora de almoço, estava de regresso a casa. Despi-me, levei o banco mais pequeno que tinha em casa para o quintal, e instalei-me debaixo da figueira do meu tio Aníbal.
Sessenta dias depois, eis-me exactamente no mesmo sítio. Não sei o que fazer com tudo isto que tenho à minha frente, mas de uma coisa estou certo. Ainda sou muito novo para sofrer de arterosclerose.

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