2007/12/28

No dia em que Eva morreu

A 26 de Julho de 1952, o dia em Buenos Aires amanheceu quente. Terrivelmente quente. Assustadoramente abafado. As testas dos senhores eram pequenas para esconder gotas de suor que, indelicadas, não tinham qualquer pudor em mostrar-se. As damas da alta sociedade da capital argentina tiveram de deitar para o lixo o pudor. As habituais golas brancas, foram substituídas por leves camisolas de seda, de decotes tímidos, e sem mangas.
Passos acelerados, e olhares fixos no chão, marcavam a atitude das almas femininas que se passearam nas ruas naquele dia. Premonitório, dizem uns. Eu acredito. Foi o dia em que Eva morreu, e eu estava num consultório médico. no centro de Buenos Aires. Perdi o andar. E logo eu, que na altura dependia das minhas pernas para tudo. O Pablo da Calle de las Palomas a coxear. Parecia impossível. Na altura era carteiro, e o raio de uma unha encravada tirou-me a locomoção. Recordo-me das dores insuportáveis.
Começaram um dia. Chovia a potes, e eu vinha para casa, vindo do trabalho. Chutei uma pedra. Pareceu-me pequena na altura. Só que era dura que nem cornos. Senti logo a unha grande do pé esquerdo a rachar. Os dias passaram, e piorei. Toda a gente que conheço tinha-se habituado a ver-me percorrer as ruas da capital, a passo acelerado. E naquele dia, manhã cedo, tiveram de ser os meus amigos Juan e Vasco a amparar-me até ao consultório de 'El doctor'. O velho tinha fama. Tinha várias especialidades ao mesmo tempo. Quando era preciso arrancava dentes. Sempre que necessário, receitava uns comprimidos para as dores de período das madames. Naquele dia, teve de me aturar a mim.
O meu pai foi doente dele, o meu avô andou com ele na escola. Aliás, o velho era mas é bom de mais. As pessoas até gozavam um bocado com o coitado do 'señor' Péron, como ele gostava de ser tratado. Para todos os efeitos, gritava aos sete ventos que tinha aberto o consultório com a mãozinha amiga do general presidente. Mas todos sabíamos que ele nunca tinha estado com o sacana do fascista. Quer dizer, um dia, há muitos anos, foi atropelado pela limusine dele, à saída do Palácio Presidencial. Ele recordava esse dia como uma experiência religiosa. Garantia que tinha conhecido Deus. Partiu as duas pernas, ficou em coma dois dias, e o Rolls Royce do fascista nem parou. Mas o velho ficou em êxtase.
Quanto a 'La Santa'. Bem, o doutor Péron adorava arranjar os pés às senhoras, desbobinando como conhecera Eva em La Plata, quando esta não era ainda mais do que uma adolescente namoradeira. Aliás, no princípio dos anos 40, quando o mundo fervia na loucura da guerra, e o doutor Péron ainda se chamava Diego Simón, rezam as fontes históricas do velho que foi ele quem apresentou Eva a 'El General'. Está bem que este é um episódio da história argentina que nunca chegou a ser inscrito nos livros. Mas na calle de los combatentes, no centro de Buenos Aires, ai de quem se atrevesse a pô-lo em causa. Maria Eva Duarte era a menina dos olhos do doutor Diego Simón 'Perón'. E no dia em que o cancro nos ovários finalmente a venceu, o doutor preferiu nem sequer ouvir as notícias.
Aliás, quando Eva deixou de aparecer em público, consumida pela maldita doença, o doutor Diego isolou-se do mundo. A morte da sua deusa era anunciada, mas o tempo para ele, parou. O doutor saía de casa de manhã em passo acelerado. Tomava o primeiro autocarro que conseguia, evitando todos os quiosques onde se pudessem ler os escaparates de jornais ou revistas. Quando lhe parecia ouvir o suave roncar de um rádio a aquecer, acelerava, e desviava-se para bem longe. As conversas, para ele, foram, a pouco e pouco, desviando-se da realidade. Com as senhoras, trocava impressões sobre o tempo, e sobre os vestidos da primeira dama norte-americana, que sempre considerou uma verdadeira senhora.
Com os senhores, não se atrevia a falar de mais nada que não do Boca Juniores. Aliás, quem sempre o conheceu, pensou que o doutor Péron fosse um pouco, a modos que, abichanado. Logo, completamente avesso a futebol. Mas ele viu 'La Bombonera' a ser construída, e costumava dizer que o seu coração seria azul e amarelo até ao dia em que desse o último suspiro. No dia em que Eva morreu, eu vi um doutor Péron desligado da realidade. A Argentina parou, mas ele não. Continuou a viver, e não verteu uma lágrima. Transformou-se num autómato. Eu continuei com o No dia em que Eva morreu, o doutor Péron, foi parar ao hospital. Não mais de lá saiu. Os médicos dizem que nunca tal tinham visto.
O seu coração diminuiu de tal forma, que simplesmente parou. O doutor Diego quis morrer calado. Lá fora, a Argentina chorava. Ele nunca o conseguiu...

Sem comentários:

Enviar um comentário

Acha disto que....