Naquele dia, melhor naquela manhã, era aniversário do último dia em que o levaram preso. O José, há anos que era só José. Tinha tido uma existência normal, tão normal quanto a Lisboa de 1965 o podia permitir. Naquela altura ganhava o pão como estafeta de uma empresa de ferragens. Pagavam-lhe para ir do Rossio todos os dias, várias vezes ao dia, a equilibrar encomendas debaixo dos sovacos, meter-se no Metro, e ir deixar coisas aos clientes. Mais anónimo do que ele só mesmo os pombos que observavam aquela cidade amordaçada, todos os dias, no cocuruto da cabeça do rei D. José no Terreiro do Paço. Mas sem saber como, andavam a aparecer-lhe em casa uns homens de gabardina preta. Perguntavam à mãe por ele. A senhora, receosa, disse-lhes onde ele trabalhava. E um dia, quando estava a sair para ir almoçar a mesma sandes e a mesma cerveja de segunda a sexta-feira, apareceram dois e levaram-no. Foi dentro de um carro, sem saber o que dizer e multo menos o que fazer. Saiu da viatura. Andou cabisbaixo ainda alguns metros, até chegar a uma casa senhorial de vários pisos, de fachada branca. Fizeram-no subir apressadamente diversos lanços de escadas, até chegar a um gabinete escuro. Só havia uma mesa comprida, quatro cadeiras, e o sol daquele dia de Primavera entrava só por uma fresta de portada de janela mal fechada. Esteve sozinho ainda um bom pedaço de tempo. Pensou na mãe que devia estar preocupada, e sentada no banco da cozinha a pensar nele porque aquilo já eram horas de ter acabado de almoçar, e regressar ao trabalho. Pensou o que poderia ser. Lembrou-se de uma discussão de futebol que tinha tido na tasca lá do bairro. A maioria dos velhotes diziam que o Eusébio só tinha era de ficar no país. Ele teimou que um jogador daqueles devia era estar em Itália. Isso nada tinha que ver com política, por isso não entendia mesmo o motivo de ali estar. Não sabe dizer quanto tempo passou, até que surgiu alguém. Um homem:
-A mim o meu amigo deve tratar-me como doutor.
Só lhe disse isso, antes de puxar uma cadeira e sentar-se ao lado dele. Foi então que começou. Levou dois bofetôes de mão aberta na cabeça. E depois uma joelhada no peito. Vieram mais dois homens que fecharam a portada da janela, e começaram a tirar-lhe a roupa. José foi arrastado nu para uma casa de banho. Só se lembrava de música alta. Fado, muito fado que se ouvia até na rua, tornando impossivel a quem passava perceber o que ali estava a acontecer. Puseram-no debaixo de água fria, com ele a tremer muito das pernas, a sentir a força e o orgulho a escapar do corpo pelos poros. Mas sempre de pé.
O doutor voltou e, aos gritos, só lhe perguntou:
-O senhor é anónimo de mais para o meu gosto. Quem são os seus amigos?Porque é que ninguém sabe de si na sua rua?
José não respondeu, porque não sabia o que dizer. Levou mais pancada, com o corpo encharcado. A tudo respondia com um abafado gemido, porque ele sempre tinha sido assim. Incapaz de incomodar alguém com a sua presença, e muito menos com a voz. Só na manhã seguinte voltou a casa. Abatido, com dificuldade em andar, mas sem marcas no corpo. Quando entrou pela porta dentro, a mãe chorava. Falava com dois policias fardados, pois já se tinha lembrado de participar o desaparecimento do filho. A senhora gritou quando o viu. Era o seu único filho, não tinha mais ninguém no mundo. Ajudou-o a deitar-se na cama, e disse aos policias que já não era preciso mais nada. Perguntou a José o que se tinha passado, mas o filho reservou-se ao silêncio. A partir daí não voltou mais a ser o mesmo. Os homens de negro voltaram mais duas vezes. José voltou a ir com eles, e regressou mais reservado. Ferido no corpo, de alma acorrentada. E prometeu, sem nada dizer, que quem o quisesse domar não saberia mais a forma certa de o fazer. Chamou-lhe resistência. Não o sabia definir, e a cada ano marcava o aniversário do dia em que o tinham mudado. Sem o vencerem, mas tornaram-no diferente
Tirado daqui
Profundo relato. Te mando un beso
ResponderEliminarUn beso tanbien
EliminarDefinitely darkly with many levels to interpret. Many a time, I have often wondered the changes in someone. You just give me more of a mysterious take on the lives of those who have lost their laughter and aren't like who I used to know. Great story!
ResponderEliminarThanks ivy for your always optimistic reading s
EliminarPois, as asas foram cortadas. E eu queria saber mais.
ResponderEliminarMuitíssimo bem contado.
Gentileza sua🙂
EliminarCortante, muito triste. A gritar aos quatro ventos...há tanta gente que não sabe.
ResponderEliminarObrigado. É um texto que não me mereceu muita confiança:-)
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