2008/01/05

Uma questão de tamanho

O estabelecimento era antiquado. Pouco mais de 80 volts conjunto de luz, pintavam de dourado adormecido paredes que já foram pretas, mas que hoje escapavam para um cinzento assustado. Quatro prateleiras brancas dispostas em quadrado, traçavam diagonais com uma caixa registadora geometricamente colocada no centro do estabelecimento, e onde se sentava o dono.
Trata-se de uma mercearia registada em todas as conservatórias necessárias à legalidade vigente, implantada no centro de um bairro respeitável, e gerida por um senhor honesto. O homem já foi José, já foi António, já foi Silva. Agora responde apenas por vizinho.Agora é uma previsão optimista, porque o estimado comerciante em causa está internado no Hospital da Divina Misericórdia local, lutando contra um surpreendente entupimento de artérias. A coisa aconteceu na rebentação de um dia igual ao de ontem, e previsivelmente semelhante ao seguinte.
Vizinho esperava o fim da informação desportiva, religiosamente recitada do interior de um transístor que resistia às agressões violentas do tempo. Mal a voz terminasse, e a corriqueira publicidade ao restaurador Olex fosse posta no ar, a caixa registadora seria encerrada, o dinheiro feito no dia colocado numa pasta de cabedal, e o estabelecimento encerrado.Mas o relógio pareceu mais lento naquele dia. Os ponteiros esperavam o inevitável, e o inesperado aconteceu mesmo.
Um ruído agudo, antecedeu outro exactamente produzido no mesmo tom de decibel. Vizinho estava de costas para a entrada, e quando a pachorrenta movimentação de pescoço que efectuou chegou ao fim, pôde constatar uma presença sumida. Parecia uma mulher, mas as indicações genéticas enganavam. Homem não era, porque ninguém de respeito pinta uma cara esquálida com o que mais de berrante a indústria cosmética consegue produzir. Por isso, na dúvida, trata-se com o devido respeito.
O meio salto de um par de sapatos vermelhos-sangue ecoava, em tom arrastado, ao longo de toda a área do estabelecimento. Completada uma volta inteira ao perímetro do quadrado, a cliente parou junto à caixa registadora, e numa voz sumida questionou:- Tem tampões?Vizinho sentiu-se embaraçado. Mas o devido respeito a um empresário obrigou-o à saudação da praxe. A um boa tarde da ordem, seguiu-se o mecanizado:
- Sim, minha senhora. Estão na prateleira em fundo de loja, no canto superior direito. Mesmo debaixo dos cotonetes.
A uma questão indolente, seguiu-se uma observação pintada de inesperado:
- O senhor não me está a perceber. Eu quero tampões para uma situação especial....
O narrador sente necessidade de apressar o final da história. Duas nuvens irritadas zangaram-se no topo da pirâmide geométrica que regulava a vida naquele bairro, e abriram caminho a um chuvisco persistente. Vizinho sentiu o impacto do rigor meteorológico, que lhe fez nascer a necessidade de apressar a conversa mas,....
infelizmente,....
não conseguiu.
Seria um ser humano quem praticou o seguinte acto. Não há certezas, mas os indícios assim o fazem prever. Num movimento sincopado, quase próprio de uma goiabeira da selva das Guianas, montada por uma preguiça centenária, a senhora que chegou, por momentos, a merecer o respeito de vizinho, abriu os jeans azuis ruçados que trazia.
Ao desenvencilhar do botão, seguiu-se uma estridente via sacra do ‘zipper’, e a inesperada revelação de uma monstruosidade demoníaca.
Duas grandes bolsas de carne acompanhavam a curvatura esquálida das coxas amareladas, e tilintavam junto das rótulas pintadas por uma psoríase asquerosa.
- Como vê sou avantajada, senhor....
Esperamos todos as melhoras de Vizinho. Os problemas cardíacos não podem impedir um estabelecimento comercial respeitável de contribuir para o bem de uma comunidade.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Acha disto que....

Etiquetas

Poesia (1342) Vida (1233) poemas (664) Surreal (575) poema (522) pensar (504) escrita (356) poesias (319) Pensamentos (215) Escrever (210) Homem (197) Introspecção (197) ser (196) abstrato (190) prosa (151) Textos (117) introspeção (107) autores (106) Reflexão (99) imagem (92) Portugal (89) Um dia gostava de saber escrever assim (86) Sem Título (84) musica (84) youtube (84) Passado (83) Amor (78) Sonhos (78) Tempo (74) Literatura (69) Absurdo (62) Contos (61) video (58) Sórdido (51) Política (50) texto (45) tristeza (44) pensamento (42) foto (40) rotina (40) História (38) imagens (38) razão (37) Ironia (36) real (34) Música (33) cinema (33) gif (33) introspecao (32) Fantasia (31) recordar (31) Ficção (30) Desilusão (28) Recordações (28) Humor (25) Memória (24) Dedicatória (22) fotos (22) refletir (22) Morte (21) desespero (21) lisboa (21) pessoal (20) Divagações (19) existência (19) Comiseração (18) Desejos (18) dúvida (18) presente (18) Inatingivel (16) reflexao (16) viver (16) Regresso (15) irreal (15) quotidiano (15) saudade (15) videos (15) Natal (14) Tumblr (14) Viagens (14) abstração (14) ideias (14) solidão (14) Religião (13) razao (13) sentir (13) sonho (13) Pelo Menos (12) Rimas (12) Texto # (12) Vídeos (12) autor (12) escritores (12) mulher (12) sujeito (12) Menina perfeita (11) cidade (11) giphy (11) noite (11) nonsense (11) politica (11) sonhar (11) aniversário (10) arte (10) blogue (10) escritaautomática (10) sentimentos (10) 'Depois de almoço' (9) desejo (9) dissertar (9) ilusão (9) sombrio (9) surrealista (9) vídeo (9) Mundo (8) ausência (8) curtas (8) fotografia (8) futuro (8) livros (8) pessoas (8) poetas (8) prosa poética (8) racional (8) relacionamentos (8) Dia Mundial da Poesia (7) Suspense (7) blog (7) coisas estúpidas (7) dia (7) familia (7) filmes (7) filosofia (7) social (7) subjetivo (7) Discurso de (6) Diálogo (6) Homenagem (6) aniversario (6) datas (6) depressão (6) desnorte (6) dor (6) filosofar (6) gatos (6) lembrança (6) loucura (6) medo (6) qualquer coisa (6) trabalho (6) Inatingiveis (5) adeus (5) belo (5) ciidade (5) comédia (5) concursos (5) corpo (5) curto (5) curtos (5) descrição (5) do nada (5) espaço (5) família (5) festas (5) ideia (5) imaginário (5) linguagem (5) luxos importados (5) língua (5) meditação (5) paginas partilhadas (5) strand of oaks (5) Actualidade (4) Ali antes do almoço e a umas horas do sono (4) amargo (4) animais (4) auto-conhecimento (4) condição humana (4) conhecer (4) considerar (4) conto (4) crossover (4) espera (4) eu (4) festa (4) ilusao (4) interrogação (4) intervenção (4) poetar (4) realidade (4) sociedade (4) subjectividade (4) tarde (4) terra (4) viagem (4) violência (4) Gótico (3) Poemas de enternecer (3) Porsia (3) Vício (3) artistas (3) beleza (3) breve (3) campo (3) colaborações (3) conformismo (3) conversas (3) céu (3) destino (3) erotismo (3) evento (3) existir (3) falar (3) fim (3) imaginar (3) internet (3) irracional (3) lamento (3) lamentos (3) liberdade (3) link (3) manhã (3) mensagem (3) obscuro (3) outono (3) país (3) pessimismo (3) popular (3) porque sim (3) páginas partilhadas (3) religiao (3) riso (3) sem sentido (3) sentimento (3) silêncio (3) umdiagostavadesaberescreverassim (3) vida pensar (3) é meu (3) 'abrir os olhos até ao branco' (2) 'na terra de' (2) América Latina (2) Blog inatingiveis (2) Denúncia (2) Fernando pessoa (2) Livro (2) Poemas música (2) Poesia abstrato (2) alegria (2) amizade (2) angustia (2) animado (2) ano (2) ao calhas (2) armagedão (2) atualidade (2) certeza (2) decepção (2) desconexo (2) diamundialdapoesia (2) discurso (2) duvida (2) efeméride (2) ela (2) fado (2) falhanço (2) felicidade (2) frase (2) frases (2) hate myself (2) hesitações (2) indecisão (2) individualidade (2) infancia (2) instrospeção (2) insulto (2) interior (2) jogo de palavras (2) jogos de palavras (2) l (2) leituras (2) lembrar (2) ler (2) lingua (2) luta (2) luz (2) monólogo (2) nomes (2) parvoíces (2) passeio (2) pensar surreal (2) perda (2) personalidade (2) pessoa (2) pictures (2) pintura (2) prosas (2) prémios (2) psicose (2) questionar (2) revolta (2) ridículo (2) rural (2) saudades (2) sem tema (2) sensibilidade (2) sentidos (2) sexo (2) simples (2) soturno (2) spotifiy (2) statement (2) subjetividade (2) tradicional (2) versos (2) vivência (2) Africa (1) Anuncio (1) BD (1) Ferias (1) Gig (1) Haikai (1) Justiça (1) Parabéns (1) Poemws (1) Poesia escrita lisboa verão (1) Poesiaa (1) Poeta (1) Prosa cinema (1) Prosa mulher (1) Teatro (1) Universo (1) abstracao (1) acomodações do dia (1) acrescenta um ponto ao conto (1) admissão (1) agir (1) alienação (1) anseio (1) ansiedade (1) antigo (1) antiguidade (1) análise (1) anúncio (1) arrependimento (1) assunto (1) ausencia (1) auto (1) blackadder (1) brincadeira (1) canto (1) cartas (1) casa (1) casal (1) celebração (1) choro (1) citações (1) coletâneas (1) comida (1) conceito (1) conjetura (1) contribuições (1) cruel (1) crónica (1) culpa (1) cultura (1) curta (1) cálculos (1) desafio (1) desanimo (1) descoberta (1) desenhar (1) desenho (1) despedida (1) dia da mulher (1) dialogo (1) discriminação (1) distância (1) divulgação (1) doença (1) e tal (1) eletricidade (1) embed (1) escreva (1) escrita criativa (1) escuridão (1) estetica (1) estrangeiro (1) estranho (1) estupidez (1) estória (1) estórias (1) exercício (1) existencial (1) explicar (1) fatalismo (1) feelings (1) filme (1) fim de semana (1) final (1) fofinho (1) futebol (1) gifs (1) guerra (1) haiku (1) haver (1) horas (1) horuscultuliterarte (1) humano (1) idade (1) imagem ser (1) imprensa (1) inatingível (1) indecente (1) infantil (1) inglês (1) iniciativas (1) internacional (1) inutil (1) inverno (1) jardim (1) já se comia qualquer coisa (1) lamechas (1) leitura (1) lengalenga (1) letras (1) links (1) livre (1) lugar (1) línguas (1) mario viegas (1) melancolia (1) memórias (1) metáforas (1) moods (1) movies (1) (1) nada (1) natureza (1) nobel (1) noite vida (1) novidade (1) não sei se um dia gostava de saber escrever assim (1) números (1) obras (1) once upon a time (1) outono quente (1) pais (1) palavra (1) palavras (1) participações (1) partir (1) paz (1) pensar vida (1) penssr (1) pensáveis (1) pequeno (1) percepção (1) perceção (1) pobreza (1) português (1) post (1) praia (1) precisar (1) problema (1) procura (1) promoção (1) provocação (1) proximidade (1) qualquer coisa antes de almoço (1) quandistão (1) quarto esférico do fim (1) raiva (1) rap (1) realismo (1) recear (1) recordação (1) redes sociais (1) remorsos (1) renascer (1) residir (1) resposta (1) reveillon (1) ridiculo (1) risco (1) ruído (1) segredos (1) sem titulo (1) sensual (1) ser pensar (1) silencio (1) som (1) surreal pensar (1) surrreal (1) sátira (1) sóporquesim (1) televisão (1) texto poético (1) tv (1) tweet (1) twitter (1) urgência (1) vazio (1) velhice (1) verbo (1) verbos (1) viajar (1) vida escrita (1) vida ser (1) vidas (1) vidasubjectividade (1) visão (1) voraz (1) voz (1) vuday (1) vulgar (1) África (1) ódio (1)