A casa do senhor Ayoama falava por si
própria. Dizem que sim, pelo menos. Eu concordo, só de a observar de longe,
enquanto espero que o sol baixe na rua contígua.
É uma construção antiga, com balaustrada íngreme e a aparentar instabilidade.
Quase parece que a tragédia pode estar iminente. Tem janelas de tamanhos
diferentes, todas com portadas e cortinados velhos e amarelecidos pelo tempo e
a poluição da rua movimentada. O senhor Ayoama raramente se deixa mostrar. É
uma figura preponderante da tradição japonesa que a minha rua sempre teve.
Tinha chegado ali há uns 30, 40 anos, com o pretexto de abrir um negócio de
quiropatia. Foi ficando, casou-se com duas mulheres que, segundo se diz, o
deixaram por se terem consumido numa tristeza de razões que nunca foram realmente
percebidas pelas pessoas.
O senhor Ayoama tinha raízes desconhecidas. Andava agora pelos 80 anos, apesar
de a aparência o levar para pouco mais de 60. Todos o
cumprimentavam quando, manhã cedo, saía de casa para um passeio ao centro da
cidade. Usava um chapéu de feltro, um sobretudo acastanhado a que aparentava
ter um grande amor. Calças de tweed, e sapatos de bico fino, que lhe
dificultavam um pouco a locomoção.
Mas nem isso lhe tirava uma boa
disposição que todos apreciavam. Após alguns minutos na rua, voltava a casa com
um saco parco de compras. Mercearias para abastecer a casa, e flores. Todos os días
flores, que usava com frequência para embelezar os parapeitos da janela de
casa.
Outra atividade que se reconhecia ao senhor Ayoama era a pintura. Em especial
quando o tempo aquecia. A meio da tarde, quando a brisa vinda da foz do rio lhe
entrava pela casa dentro, envolvendo-se numa dança virginal com os cortinados
envelhecidos, o idoso japonés era visto concentrado em frente a uma tela. Do
exterior era impossível perceber o que pintava. Apenas que a arte lhe
proporcionava alegría. Um sorriso insólito e permanente, que podía observar, e
me deixava também feliz.
Um dia, o senhor Ayoama pareceu ter-se fartado do que tinha sido a sua vida das últimas décadas. As pessoas começaram a ver várias carrinhas paradas à
porta de casa, com estafetas empenhados em carregar os parcos haveres do
respeitoso oriental. Até que uma jovem de pele alva, olhos rasgados, e total
discrição, surgiu em frente ao prédio. Pressionou a campainha que dizia
respeito à casa do senhor Ayoama, este surgiu à janela sorridente, e mandou-a
subir.
Por algum tempo, dedicado ao meu passatempo dos inícios de tarde de há muito,
vi-os parados na janela da divisão de casa onde normalmente o senhor Ayoama
pintava. Falavam, sem que percebesse sobre o quê. Ocasionalmente, ele punha-lhe
a mão nos ombros, e abanava-a muito levemente. Talvez um aspeto do
relacionamento pessoal oriental que desconheço. E fazia frio, uma súbita
descida de temperatura naquele canto caldo do mundo, quando o senhor Ayoama
saiu pela última vez do prédio onde tinha morado por tanto tempo. Veio
acompanhado pela sua jovem e desconhecida amiga, Segurava uma mala de xadrez,
com um pedaço de tecido, quase mínimo, a pender do fecho. Ela trazia dois vasos
com flores. Quando chegaram à rua, olharam ambos para cima. Os primeiros pingos
de chuva surgiram, e selaram a despedida do que foi um raio de sol que abraçou
aquele canto do mundo. O senhor Ayoama. Desconheço onde possa andar agora.
2024/03/16
O senhor Ayoama
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Uma bonita prosa poética, senhor M
ResponderEliminarQuisera que um dia qualquer descobrisse por onde anda o senhor Ayoama. Ou seria ele apenas uma imaginação, dessas que os poetas gostam de dramatizar. Adorei !
Feliz fim de semana e a entrada da Primavera seja inspiração para mais contos.Abraço.
Obrigado 🙂
EliminarMe gusto el relato . Todos nos cansamos alguna vez de ver el mundo detrás del cristal. Te mando un beso.
ResponderEliminarUn beso tanbien
EliminarIt feels it must have gone full circle..and another began. It is always unusual what we witness across the street. All the best to your writing.
ResponderEliminarSomething like that
Eliminar:-)
It's kind of funny, I was watching the tree across the street in front of the neighbor's house..and the limb broke. Initially, I thought of the neighbor who had put so much effort in to that house and the landscape and had taken down the other big tree some time ago..when all along it was the tree that remained that had been all the trouble. He had an unfortunate accident when he moved. Now we just have passerbyers who live there and seldom take out the trash. Yes, I'm certain we can't help to be voyeurs. Thanks for this story!
ResponderEliminarHuge coment
Eliminar:-)
Very relatable! We just don't know our neighbors like we used too.
ResponderEliminarIt's not that sense. But close:-)
EliminarEu dou por mim muitas vezes a olhar pela janela, tenho vizinhos novos, são ingleses, nunca nos falaram, nem o nome sei deles...
ResponderEliminarÉ um bom vicio, a curiosidade
EliminarEu sempre tive muita
🙂
You have definitely started something here..with this story..oh, I keep watching the house across the street.
ResponderEliminarThanks ellie🙂
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