2023/11/27

Exercício de envelhecimento

 

Terminal de autocarros de Ljubiliana, Eslovénia 
26-6-2023

Cheguei a velho, e ninguém me tinha ensinado a lidar com isso. Eram manhãs diferentes, com uma diferença insinuante, que batia à porta quase como se quisesse entregar uma encomenda de um familiar distante, e depois nos entrava pelos poros, numa dor excruciante e que humilhava. As frases saíam a medo. O cérebro dava mostras de desligar muito devagar, e afogueava todos os sentidos, numa clara sensação de não retorno.  Eu consigo ainda perceber quando essa noção clara de fatalidade chegou.  Tenho 62 anos conformados. O meu corpo falha, mas falha subtilmente.  Mostrando que é ele quem manda, e que eu nunca poderei fazer nada para evitar essa fatalidade.  A minha vista esmiuça-se como bagos de arroz. O som da vida chega-me por um túnel que se vai estreitando cada vez mais, a ponto de acordar sem me reconhecer a mim próprio.  A memória, bem, essa sinto-a como um caleidoscópio sem sentido, e com cores que nem sequer consigo dominar. Era um inicio de manhã de Inverno, e procurava sapatos decentes para calçar. A minha casa tem uma divisão única para estes acessórios, e cada par tinha até aqui uma história diferente para contar. Tinha apreendida a data, o contexto, a verdade com que tinha comprado cada um deles. E, de repente, isso parece ter sido a primeira coisa que deixei de controlar. Depois veio a necessidade de cumprir horários.  Considerava-me um fanático da rotina, com horas meticulosamente definidas para cada parte do dia. E esse desejo esvaiu-se a seguir. Passei a arrastar-me da cama de manhã. Não tinha objetivos porque escolhia deixar de os ter.  A uma solidão auto assumida, tinha aprendido a responder com designios fortes de vida.  Perceber o mundo em que vivia, dominando assuntos que eu próprio escolhia.  Fazer-me ver junto dos edifícios dos órgãos de soberania que tinha aprendido a respeitar. E principalmente, acima de qualquer outra coisa, não ser mais um na maré de anulação que matizava os dias. E agora escrevo a forma como isso me está a ser retirado.  De uma forma vil e metafórica. Não ter já quem nos salve de uma fatalidade como esta, é mais doloroso que inacreditável. 

8 comentários:

  1. La vida pasa como uno lo afronte es lo que hace la diferencia. Te mando un beso.

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  2. Envelhecer é inevitável.
    Mas há muitas e variadas formas de envelhecer.
    Uma excelente reflexão, gostei de ler.
    Um abraço e boa semana.

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  3. E, no entanto, envelhecer traz uma certa paz.

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    1. Concordo se for encarada forma menos trágica
      🙂
      Bem vindo ao blog

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  4. Pois é "fatal como o destino"! Ainda bem que se chega a velho. Mas 62 anos?... É melhor ninguém se deixar abater pelo peso da idade. Antes ser velhote e não pensar nos anos.

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    1. A banalidade do talento do autor atéo faz ter boas ideias. O problema depois é desenvolvê-las
      :-)

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