2019/04/19

Amor alagado em ódio (parte II)


Foram os dois, lado a lado, com vontade domada de dar as mãos, a contornar as poças de água que empapavam o caminho para fora daquele terreiro. Ele acompanhou-a a casa na primeira noite. Prometeram voltar a ver-se. Seis meses depois estavam noivos. Ela tinha dezasseis anos, com os dezassete prometidos para um trabalho no Lar de velhotes da freguesia. Não quis estudar, porque dizia que não tinha cabeça. Ele ajudava o pai numa loja de ferragens, mas queria ser músico. Foi o padre que os tinha batizado a ambos, quando o destino parecia que nada ia fazer para os juntar, que os uniu para todo o sempre. Não demorou para que Amélia cumprisse o destino das mulheres da terra. Ser mãe jovem. Um, dois, três meninos. Todos saudáveis, rosados. Os pais davam uma ajuda a criar. Ela não recusava a maternidade, mas preferia ouvir músicas de amor na rádio, todo o dia. Afonso trabalhava, e à noite cantava para Amélia. As músicas falavam de mundos sem cor. Onde as pessoas eram felizes, e não havia dinheiro. Tudo se pagava com amor, e caminhos mão na mão até à velhice, e ao que viesse depois.
Os meninos foram para a escola, e o dinheiro não esticava. Afonso ainda foi trabalhar para Espanha. Ajudava numa herdade, na apanha da azeitona e mais o que surgisse. Amélia cosia roupa, e tomava conta de velhotes. Sempre os velhotes. As coisas mudaram quando ele voltou. Não tinha o mesmo apego à casa, a deitar-se com ela de noite, e jurar-lhe coisas de amor bordadas a luz, que a deixavam tão feliz. Não explicava porque tinha mudado. Só passava menos e menos tempo em casa. Amélia não conseguia chorar em frente a ninguém. Só olhava para um gato velho que a ia visitar, de quando em vez, às portas da cozinha, e soltava lágrimas que a pareciam deixar pintada de noite, e com os olhos feitos lua em tempo de invernia.
A primeira falta de respeito, como lhe chamava de si para si, veio numa vinda da taberna. Afonso já devia ser um alcoólico, era o que pensava no meio da pouca cultura que ainda lhe restava. Na televisão diziam que tinha de se começar a usar uma nova moeda, que vinha lá da Europa. Ele perguntou-lhe porque é que ela o olhava assim. Ela baixou a guarda para o chão. Foi então que só se apercebeu de um vulto, que baixou sobre a sua cabeça. Doeu-lhe no corpo, e na alma. Caiu indefesa no chão. Não conhecia o homem que destilava fel contra ela. Os miúdos estavam com os avós. Afonso retirou-se, e voltou a chorar. Pediu desculpa. Disse que a amava, e iria amar para todo o sempre. Ajudou-a a levantar-se. Cheirava tanto a álcool, que Amélia quase conseguia contar as cervejas que tinham feito dela, umas horas antes. (segue)

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