2019/04/18

Amor alagado em ódio (parte I)

O barulho foi ao mesmo tempo assustador, e revelador. O metal da arma desenhou um som agudo, estridente mesmo, quando assentou no vidro do tampo da mesa. Afonso fechava o punho, os olhos estavam semicerrados,… Vestia a roupa com que normalmente sentia sair de si próprio. Um casaco preto, muito ruçado, logo assustadoramente velho. As calças que o pai lhe tinha deixado só há duas semanas, antes de dar o último suspiro, e lhe dizer para perder a ânsia de se deixar dominar por um génio que parecia viver dentro dele. Nos pés, umas botas novas. Castanhas claras, que lhe tapavam os tornozelos negros do trabalho no campo. Ao lado, sentada numa cadeira, de cabeça baixa, Amélia Cristina, menina prendada da aldeia onde os sonhos não entravam porque toda a gente os recusava, pedia que o tempo passasse depressa para que o pesadelo acabasse. O homem que ainda amava pedia-lhe uma razão para que a vida dos dois não acabasse, sorvida pela precipitação das decisões mal pensadas. Amélia chorava silenciosamente.
 Ainda se lembrava de quando o tinha conhecido. Fora na festa de uma aldeia, a meio caminho da casa de ambos,…há tanto tempo que já parecia pouco. Ele era assustadoramente bonito. Se por um lado achava que, um dia, iria dar-se mal por entregar-se nas mãos daquele homem, por outro não hesitou. Ele sorriu-lhe, de uma forma intermitente, tímida, ao longo do que parecia uma eternidade. Ela simplesmente não esboçou reação. Só olhava para o céu, à espera que nas estrelas se desenhasse qualquer coisa que a ensinasse a sair dali, e a voltar para uma existência anónima. A chuva pareceu precipitar tudo. Ela abrigou-se debaixo do telheiro da capela da aldeia. Ele seguiu-a e apresentou-se:
-Afonso, como o primeiro Rei de Portugal!!!
Arrancou-lhe o primeiro sorriso, envergonhado mas sincero. Parecia uma coisa em crescendo que ali se construía. Parou de chover. Veio a mão cavalheiresca para a ajudar a descer do estrado onde se abrigara. Perguntou-lhe o nome. Respondeu, baixinho, Amélia. Estava cheia de frio. Acreditou, ao sair de casa, que o final de Verão do interior ainda continua a ser Verão. Mas, naquela noite, já o Outono se aproximava para desmentir tudo. (segue)

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