O barulho foi ao mesmo tempo assustador, e revelador. O
metal da arma desenhou um som agudo, estridente mesmo, quando assentou no vidro
do tampo da mesa. Afonso fechava o punho, os olhos estavam semicerrados,…
Vestia a roupa com que normalmente sentia sair de si próprio. Um casaco preto,
muito ruçado, logo assustadoramente velho. As calças que o pai lhe tinha
deixado só há duas semanas, antes de dar o último suspiro, e lhe dizer para
perder a ânsia de se deixar dominar por um génio que parecia viver dentro dele.
Nos pés, umas botas novas. Castanhas claras, que lhe tapavam os tornozelos negros
do trabalho no campo. Ao lado, sentada numa cadeira, de cabeça baixa, Amélia
Cristina, menina prendada da aldeia onde os sonhos não entravam porque toda a
gente os recusava, pedia que o tempo passasse depressa para que o pesadelo
acabasse. O homem que ainda amava pedia-lhe uma razão para que a vida dos dois
não acabasse, sorvida pela precipitação das decisões mal pensadas. Amélia
chorava silenciosamente.
Ainda se lembrava de
quando o tinha conhecido. Fora na festa de uma aldeia, a meio caminho da casa
de ambos,…há tanto tempo que já parecia pouco. Ele era assustadoramente bonito.
Se por um lado achava que, um dia, iria dar-se mal por entregar-se nas mãos
daquele homem, por outro não hesitou. Ele sorriu-lhe, de uma forma
intermitente, tímida, ao longo do que parecia uma eternidade. Ela simplesmente
não esboçou reação. Só olhava para o céu, à espera que nas estrelas se
desenhasse qualquer coisa que a ensinasse a sair dali, e a voltar para uma
existência anónima. A chuva pareceu precipitar tudo. Ela abrigou-se debaixo do
telheiro da capela da aldeia. Ele seguiu-a e apresentou-se:
-Afonso, como o primeiro Rei de Portugal!!!
Arrancou-lhe o primeiro sorriso, envergonhado mas
sincero. Parecia uma coisa em crescendo que ali se construía. Parou de chover.
Veio a mão cavalheiresca para a ajudar a descer do estrado onde se abrigara.
Perguntou-lhe o nome. Respondeu, baixinho, Amélia. Estava cheia de frio. Acreditou,
ao sair de casa, que o final de Verão do interior ainda continua a ser Verão.
Mas, naquela noite, já o Outono se aproximava para desmentir tudo. (segue)
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