2008/04/03

A Setúbal (Manuel Cristal)



Manuel Cristal sangrava das gengivas. Aliás, boca diminuída, com dentes gastos até ao tutano. Mas nunca, nunca desdenhava um sorriso, de orelha a orelha, mal a manhã rasgava.
O Verão tinha nascido há dias. O sol dava mostras hercúleas disso, levantando-se no horizonte em fios de aço. Coisa dura, levar no coiro com um calor que fazia borbulhar as águas pasmaceiras do Sado. Manel desdenhava os dias em que não conseguia banhar as ideias limitadas nesse fenómeno.
Entre as seis, e mais uns piquitos, desmontava da bicicleta.
Tinha um recanto, na Doca das Fontaínhas, onde guardava a pasteleira. Ficava acorrentada a uma cabine telefónica que se acinzentava de abandono. Velha, mas que mesmo assim fincava pé no chão que gangrenava com raízes de árvores centenárias.
Que se volte ao sorriso de Manuel Cristal. O primeiro que conhecia a luz do dia, saltava por nada. Simplesmente porque viver numa terra em que o ar cheira a arrotos de deuses, tranquilizava-o. O segundo, tinha como receptor o tal sol de aço. Manuel nunca se apercebeu de como quem cria, o que aquece, gosta de quem se conforma como foi criado.
Prova disso:
era uma pasta avermelhada o que lhe gotejava da boca. Ao terceiro, quarto sorriso, quem o conhecesse de novo, virava a cara. Os que andavam com Manel na algibeira, habituaram-se. Gostavam de quem agradecia ao rio pai, e à serra mãe por estar vivo. Sebastião da Gama chamou a pessoas como Manel “os indiferentes da vida”, e amava-os de coração.
O sorriso de Manuel Cristal valeu-lhe até a morte. Um dia estava sentado a olhar o Sado. Nossa Senhora do Bonfim fitava-lhe as costas, e a Arrábida admirava-lhe o sorriso. Manel agradecia à vida, sorrindo. O coração simplesmente parou, e um corpo amolgado das danças embaladas pela voz cansada do Chico da Cana abandonou-se ao descanso eterno.
O Sado engoliu-o, simplesmente porque o escritor assim o quer.
Não faria sentido bajular uma cidade, e esquecer que as coisas que valem a pena, são até para valorizar quando se descreve um fim. Um ponto final.

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