2024/08/29

Jovem num passado

 Ainda só é 1983. Chove tanto. As minhas mãos agarram o nada. Observo dois homens que se observam, cruzando caminhos, apressados para fugir ao temporal. A verdade não é minha, é de toda a gente, dos desesperados, da vontade súbita de mudança. Sirvo o chá abrasante, enquanto um fio de som abafado me entra, sorrateiramente, nos canais auditivos. São as notícias do dia, servidas em pleno de confusão e desprezo por minha parte.
Passo os dedos pelo jornal do dia, com um gato a insinuar-se no calor extremo e instável que o meu corpo liberta. Sou jovem, gosto de nuvens de pombos a voarem na praça central da minha terra. Um corpo de mulher vale o mesmo que o respirar para mim. O amor é um jogo do galo apressado, feito nas costas das mãos suadas de uma tarde de Verão. Sou ninguém, e mais qualquer pessoa por conta das hesitações que pratico. Sou o mestre do etéreo, dos poemas que não completo. De querer escrever mais, sempre mais, melhor, de forma cativante, inovadora, mas que não sai nunca do tempo fútil do desejo. E chove cada vez mais. Não sei se me quero recordar de há quanto tempo nasci. Da presença inócua do tempo na minha vida. E faço por percorrer a larga amplitude da divisão fechada em que me encontro, com passos curtos. Sou sozinho, não estou tomado por nada. A presunção cabe numa caixa mínima de rapé, em cima da televisão desligada e a ganhar pó. O exterior prende-me de novo a atenção. O vento verga à subjugação as árvores velhas, e faz o real dançar num turbilhão de filme-catástrofe. Sinto um torpor, e depois uma lágrima, e outra, a rolarem-me, perdidas, pelas faces. O refúgio são os bolsos das calças. Se tivesse a alegria como prato do dia, sorrisos enleantes e desafiadores que comigo dançassem, seria tudo tão diferente. Olho para trás. Um gato observa-me. Uma voz abafada anuncia que um avião caiu algures. A mortandade foi total. Sou jovem. Não me importo. A vida é uma plenitude fechada, conforme a vejo.



8 comentários:

  1. A veces uno se siente asi. Te mando un beso.

    ResponderEliminar
  2. Such wonderful imagery of emotion. You do have a way with words.

    ResponderEliminar
  3. Truly, you know how to draw us in. Showing us the mystery. So intense and yet to escape it somehow with youth. Very clever.

    ResponderEliminar
  4. This has such a great rhythm, perfect for its dark shadows. Showing a world within a world. And of course, I was sidetracked by the cat, but who isn't. Thanks so much for this piece.

    ResponderEliminar

Acha disto que....