Ainda só é 1983. Chove tanto. As minhas mãos agarram o nada. Observo dois homens que se observam, cruzando caminhos, apressados para fugir ao temporal. A verdade não é minha, é de toda a gente, dos desesperados, da vontade súbita de mudança. Sirvo o chá abrasante, enquanto um fio de som abafado me entra, sorrateiramente, nos canais auditivos. São as notícias do dia, servidas em pleno de confusão e desprezo por minha parte.
Passo os dedos pelo jornal do dia, com um gato a insinuar-se no calor extremo e instável que o meu corpo liberta. Sou jovem, gosto de nuvens de pombos a voarem na praça central da minha terra. Um corpo de mulher vale o mesmo que o respirar para mim. O amor é um jogo do galo apressado, feito nas costas das mãos suadas de uma tarde de Verão. Sou ninguém, e mais qualquer pessoa por conta das hesitações que pratico. Sou o mestre do etéreo, dos poemas que não completo. De querer escrever mais, sempre mais, melhor, de forma cativante, inovadora, mas que não sai nunca do tempo fútil do desejo. E chove cada vez mais. Não sei se me quero recordar de há quanto tempo nasci. Da presença inócua do tempo na minha vida. E faço por percorrer a larga amplitude da divisão fechada em que me encontro, com passos curtos. Sou sozinho, não estou tomado por nada. A presunção cabe numa caixa mínima de rapé, em cima da televisão desligada e a ganhar pó. O exterior prende-me de novo a atenção. O vento verga à subjugação as árvores velhas, e faz o real dançar num turbilhão de filme-catástrofe. Sinto um torpor, e depois uma lágrima, e outra, a rolarem-me, perdidas, pelas faces. O refúgio são os bolsos das calças. Se tivesse a alegria como prato do dia, sorrisos enleantes e desafiadores que comigo dançassem, seria tudo tão diferente. Olho para trás. Um gato observa-me. Uma voz abafada anuncia que um avião caiu algures. A mortandade foi total. Sou jovem. Não me importo. A vida é uma plenitude fechada, conforme a vejo.
2024/08/29
Jovem num passado
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A veces uno se siente asi. Te mando un beso.
ResponderEliminarUn beso tanbien
EliminarSuch wonderful imagery of emotion. You do have a way with words.
ResponderEliminarI try:-)
EliminarTruly, you know how to draw us in. Showing us the mystery. So intense and yet to escape it somehow with youth. Very clever.
ResponderEliminarYou're too kind:-)
EliminarThis has such a great rhythm, perfect for its dark shadows. Showing a world within a world. And of course, I was sidetracked by the cat, but who isn't. Thanks so much for this piece.
ResponderEliminarThanks for the coment:-)
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