2024/05/25

...com a polpa a escorrer

 O encontro não tinha local marcado. Tinhamo-nos proposto a conquistar o espaço entre o desejo e a irresponsabilidade, e isso poderia ser feito em qualquer lugar. Havia chuva. Muita chuva que caía a um ritmo desconcertante, tamborilando no metálico daquele mundo que tu e eu renegariamos, à primeira oportunidade.  As ruas estavam vazias, com o vento a tomar as vezes do fantasmagorico das pessoas.  Saimos de casa mais ou menos à mesma hora. O sol queria, sem poder, furar o concentrado das nuvens que cinzelavam aquela parcela do real.  Do meu lado foi um percurso calmo. Ponderado. Sentia que não havia pressa, porque provavelmente, quando partilhassemos o mesmo canto do espaço, o tempo passaria a ser nosso. Coisa que não tinha acontecido até aí.  E havia tanta coisa que sentia ter de captar. Para te descrever em frases longas, com a polpa a escorrer. Cheia de silêncios bem posicionados, e amor sorrateiro, tímido em mostrar-se. Chegado ao local combinado, senti que já nos sentiamos um ao outro. Um bebado sem destino passou mesmo ali perto, com a sua própria maneira de tentar segurar o mundo. E pareceu dar-me a paz que precisava para cruzar o meu olhar com o teu. E foi bom. Sentir finalmente que era no não verbal, na segurança quente e dissecada do toque, do sorriso, da virtude profunda de um mundo partilhado, que me sentia bem. Contigo...

                                                                           Tirado daqui

undo (1994) 

Realizador: Shunji Iwai

7 comentários:

Acha disto que....