2023/06/19

Mais um atrevimento literário incompleto

 


-o Júlio já pinta!!!

Esta é uma memória como outra qualquer. A voz do Jon Bon Jovi ecoava pelos pátios da escola, quase dissolvida no vento de inicio de Outono. Os putos andavam todos de fato de treino, relogios casio nos pulsos, e eu tinha-me lembrado de pôr o meu grupo de amigos a rir. Depois sofri com isso. Lembro-me que no meio das gargalhadas de gozo com o Júlio, reparei na sua expressão de raiva a crescer. A mão direita a pentear os caracóis soltos como lã de ovelha, a esquerda a bater descompassadamente na perna, e mais rápido que o toque para o fim do intervalo ele avança contra mim, e prega-me um direto na cara que me projeta contra o vidro da sala de trabalhos oficinais. Foi nesse preciso momento que o livin on a prayer acabou, e os miúdos voltavam como autómatos para as aulas.

Se tinha posto toda a gente a rir, já ninguém ficava agora para trás a mostrar piedade pela justa retribuição que eu tinha acabado de receber por ter humilhado um colega. Dei por mim como o último no recreio. A bochecha a doer-me. O Júlio era um bom boxeador. A minha mochila caída ao meu lado ah, e começava a chover.

Levantei-me e segui para a aula. Acho que era matemática. Nao me recordo bem. Isto foi em meados de 1986, e aqui sentado na sala de minha casa, com uma playlist de spotify a tocar, e um laptop aberto em ângulo reto, faz-me pensar que se calhar na altura, eu já sabia mais o que não queria, do que tinha certezas sobre como seria o meu futuro. Fui o último a entrar na sala. A professora de matemática, uma tipa que eu hoje consideraria decerto insegura, com as suas constantes blusas em turtleneck, e um silêncio entre aulas que parecia desprezar os alunos, só me pediu para fechar a porta, e sentar-me ao lado do Júlio.

Nós éramos miúdos de 10, 11 anos, que não sabíamos nada sobre proporções de insultos, e amor próprio, ou até domínio de um discurso coerente. Só gostávamos de ser engraçados, os mais fixes.

Depois de 40 e tal minutos de arrazoado sobre equações, saímos e eu fui pedir desculpa ao Júlio. 

Lembro-me que ele estava a ler A Bola, na altura em que ainda era um lençol que servia de abrigo aos vagabundos nas ruas. Sentei-me ao lado dele. A Samantha Fox tinha começado a cantar, e foi por entre um insinuante 'touch me'', que abri o coração:

-não ficaste chateado com aquilo pois não?

Ele voltou a não responder. Estava mais interessado na crónica do Benfica-tirsense. Nem se importava que, mais uma vez, estivesse a chover.

8 comentários:

  1. Gostei do "atrevimento".
    Que poderá ser o início de um romance com 300 páginas... dada a qualidade da narrativa e respetivos ingredientes.
    Boa semana, caro amigo Miguel.
    Um abraço.

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    Respostas
    1. Obrigado pela opinião caro jaime
      Eu e a prosa somos inimigos figadais, por enquanto
      Nao queremos nada um com o outro
      🙂

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  2. Eu adoro as prosas ,M
    e essa foi 'maneira', como dizemos aqui quando algo é interessante e divertida. Não saberia compor nem um versinho, mas gosto e escrever aleatoriamente sobre o que anda rolando pela vida - a minha ,por certo. rsrs vai tudo pra gaveta porque são ruins ... rs
    beijo, M e boa semana

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