2019/09/02

Exercício de escrita

Naquela tarde, quando já tinha acabado a descarga habitual do camião de bibelots que dia sim dia não tínhamos à porta de casa, degustavas um prato de amêijoas. Depois da sopa de lentilhas que trouxeste do trabalho, sentei-me a ver-te comer. Não havia interrupções para ouvir coisas desnecessárias, nem afagos de mão para atestar sentimentos que talvez nunca existiram. Apenas estar ali. Sem noção de tempo, nem precisas notas de rodapé que prenunciavam fins desejados por uma, ou duas partes.
O cão acordou entretanto, e entrou pachorrento pela sala. Deitou-se aos teus pés, sem mais força do que a suficiente para te contemplar com um amor intermitente. Olhei para ele, e os caracóis da franja sobre os olhos  tiravam-me a certeza se estaria a dormitar de novo.
-estranho o teu silêncio. O que me queres dizer?
Lá fora discutiam dois bêbados. Dava para perceber. Um dizia que queria o dinheiro até amanhã à mesma hora,... O outro chorava.
-não te quero dizer nada. Só me apetece estar a olhar para ti enquanto comes.
Terminaste as amêijoas. Pareceu - me ouvir dizer que estavam saborosas. Limpaste a boca com um guardanapo amarelo, e depois a refeição terminou com dois golos de água num copo.
Levantaste-te e resolveste fazer descer mais um pouco o estore. A sala ficou num breu acolhedor, com a luz a desenhar pequenos triângulos dourados na parede branca.
Sentaste-te ao meu lado no sofá, e na televisão o Humphrey bogart tagarelava algo a preto e branco.
Puxaste a tua pasta bem tratada com as coisas do trabalho, e tiraste um dossier com várias folhas. Ordenaste-as o suficiente para me tirares parte da tranquilidade que até aí sentira, e olhaste para mim.
-este é o meu testamento.
Quando me sentia acossado, sem fôlego, com a compreensão adensada por qualquer coisa inexplicável, os meus olhos desviavam-se. Fixei um canto da sala de onde, por vezes, já tinha reparado que saiam formigas em carreiro. Não consegui responder.
-para que não penses que tenho superpoderes, ponho as cartas na mesa.
Só me ocorreu perguntar-te:
-mas que história é essa?
Disseste que me querias provar o teu amor. As nossas coisas, que já tinham existido, não valiam nada. Pensavas no futuro. Porque tinhas pessoas que não gostavam de ti. E achavas que o tempo passa tão depressa, que pode ser traiçoeiro.
Não conseguia responder nada. Lembrei-me de quando nos conhecemos. Todo aquele acidente inusitado. Saias do comboio com duas malas. Eu tropecei e caí a tua frente. Pediste-me mil desculpas. As coisas desenrolaram-se quase como um texto sem narrador. O primeiro beijo, o primeiro, o segundo, o terceiro sexo. As promessas de que o tempo custará menos a passar se o fizéssemos juntos.
-deixo-te umas aplicações que tenho no banco. O meu carro também já está em teu nome. E não tenho muito mais.
O meu silêncio acelerou a tua pressa.
-falamos mais logo.
A um beijo, seguiu-se uma volta de canhão de fechadura.
Resolvi escrever para que tudo ficasse em perspetiva.


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