2019/08/10

...tantas coisas

Saiu de casa, e para trás deixou-me com tantas coisas. Uma mala de viagem comprada num daqueles mercados em que, um dia, gostámos de nos perder. Era acastanhada, com um fecho cromado, de fivela. Cabiam lá dentro todas as camisas que ela me comprou, bem dobradas. Não perdiam a goma, e ainda havia espaço para algumas gravatas enroladas, em novelo. As meias ficavam numa bolsa na contracapa da mala, embrulhadas em punho fechado, como todas as mulheres mandam. Ficou para trás o ferro de engomar que tratava das camisas, e ainda vários sapatos já gastos do uso.
Os livros mereciam o meu silêncio, espantado. Estavam concentrados em montes derrubados, quase como aqueles filmes de domingo à tarde, com montanhas arrasadas por caças japoneses que devastavam as ilhas do Pacífico, e depois fugiam em direção ao pôr do sol. Havia uma bíblia, como há em todo o lado. Coisas da escola, com o 'Felizmente há luar', do Sttau, que ambos gostámos de ter sido obrigados a ler, em lugar de destaque.
Havia muito mais. Talvez, escondida, houvesse até uma lista de tudo aquilo com que fiquei.
Não conseguia pensar.
Só me ocorriam os pequenos almoços de fim de semana, na Baixa, tomados em silêncio no meio da estridência dos gritos das famílias com crianças pequenas que nos afogavam, só porque nós sempre deixávamos. E gostávamos.
E os jantares de todos os outros dias, também em silêncio. Uma batata frita de pacote, endurecida porque não havia dinheiro para comprar mais, sabia porventura melhor se os maxilares e a língua só se concentrassem no ato de comer. Nunca no de falar.
Talvez tenha sido esse o silêncio que acelerou aquela saída. E para trás ficaram tantas coisas....


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