2024/10/28

Escrito a 25 de Abril de 2024


                                                                               Tirado daqui

Gostaria da vontade,
Um casaco de retalhos,
Simples,
De homem pobre,
E o desejo de mais qualquer coisa no prato,...

Um passeio no parque,
Olhos amendoados,
Dizer que conheço muito do mundo,
E estive onde o sol se põe e nasce a todas as horas do dia,....

Enliar-me em cordel de livros,
E a mentira como companheira de dança,...

E no fim,
Quando a dança estiver a parar e já não me sobrar pele,
Dizer sou estrangeiro ainda menos do que autóctone nos meus sonhos

2024/10/27

Mais qualquer coisa para a luz

 Estar aqui com a inocência de se perder um homem. Deixar de ser o que ele representa,...


Os olhos fixos em cenas assustadoras,

Uma hesitação,

Um choro de perda,

Um corpo envolto em chuva aleatória,....


Nada significa com o tempo parado como está,

Sem razões de alarme,

Com a indolência própria de não ter o que dizer,

Nem onde estar,...


Só vejo o que esta ilusão me permite,

E é assim,

Mais qualquer coisa para a luz 

                                                                               Tirado daqui

2024/10/26

...fortuita expectativa da loucura

 Dor,

Nao sei se sou daqui, nem como gira a minha cabeça. Não vejo um fim para isto. A minha idade é de medo, o meu corpo reflete os desejos que já tive de cada vez que olhei para o mundo.

Há uma mulher em cada sombra deste quarto. E em cada lágrima que me acompanha na cara, um tormento por realizar.

Nunca fui o melhor de mim, nem a fortuita expectativa da loucura. Toda a gente consegue o que quer. Ou pensa que consegue. Eu queria uma casa no entardecer. Só com uma cama. Nada mais seria necessário. 

Que me tirassem daqui, me lavassem o corpo e a alma. Me chamassem amigo, como se um amigo se vendesse numa loja de flores para apaziguar o reflexo escurecido dos passos da derrota. E conseguindo eu ser amigo,

Fosse o amigo certo. Nem excessivo, nem atrapalhado. Nem mal escrito e intragável a um esteta. Um amigo.

Passarei silencioso pelos que eventualmente me apreciarem. Assim o tempo o venha a querer.

                                                                                  Tirado daqui

2024/10/25

...de sitio em sitio

 Tinha acabado de fazer 40 anos. O tempo urgia. Não pertencia aquele sitio. As suas prioridades estavam noutro local, do qual pouco ou nada se lembrava. Abriu uma caixa de cartão pequena, que guardava na mala que arrastava de sitio em sitio. Era lá que ostentava o amor, sob a forma de resmas estranguladas de papel. Rabiscado, etereamente perfumado. Tinha lá escrito o que tinha sido, mais do que aquilo que era, ou que queria ser. As vozes que ouvira. A volatilidade do seu ser. As bocas que beijara. O sexo desnecessário do qual só se lembrava graças a uma sucessão de linhas sem sentido, e que casavam distintamente com o branco do papel. Experimentou andar perdido naquele sítio. Corria, de canto em canto, de espaço em espaço, pelo meio de todos os olhares, femininos ou não, que o devoravam como uma presa perdida numa savana de qualquer ponto do planeta. Ele era isso. Um pedaço de carne sem destino, e principalmente sem vontade...

                                                                                 Tirado daqui

2024/10/24

...barco casca de noz

                                                                       Tirado daqui

Exigir o belo como onírico,
Um finissimo retalho de papel transparente,
Dos que se usam para deitar a beleza ao nosso lado,
Com o intuito de lhe fazer juras de qualquer coisa no resto da noite,....

É errado pedir o que seja da beleza,
Observá-la quanto muito,
Enquanto por exemplo descende no horizonte,
Em cima do barco casca de noz do pescador que não liga à solidão,
E aspira sozinho à união com o eterno,...

Traz por isso um saco sem cor,
O rosto de um boneco que nasceu no principio dos tempos,
E o teu livro de desculpas,...

Vamos viajar,
Até qualquer sítio onde a porção do eterno seja visível 
 

2024/10/23

....o desejo renascido

Por isso marca a tua passagem,
o som atenua,
a palavra ressurge como conceito,
virtude,
algo efémero que se desfaz na concomitância
do tempo,….

os passos aviltam o passado,
o desejo renascido,
reconfigurado,
e o que se imprime é a voz,
o que fica dito,
e passa a quem faz da recordação,
o ar

                           Tirado daqui

De: Marc Riboud

2024/10/22

...a companhia do falhanço

 Escasseava a vontade,

Os trejeitos de chuva necessários,

Até a porção de loucura,...


Tudo faltava para que a escrita brotasse,

E só a companhia do falhanço,

Da eminência de emudecer,...


Sem que mais nada saísse do casulo da criação,

Para a acidez do ar tóxico destes dias plumbeos,

Mantinha-se o alerta,...


Tudo o mais não produzia quaisquer necessidades,

Fundamentais para a luz,

E à continuação da fantasia especial

                            Tirado daqui

2024/10/21

...a pena solta

 Guardei as palavras que achei corretas,

Não me apego aos conceitos,

Às ideias soltas,...


O que escrevo,

O que redijo a pena solta onde tiver que ser,

Respira antes de andar,... 


Vive da fruição,

Dos dias que amanhecem com o amor de dois passarinhos que não dormem,.. 


E o que guardei,

Está longe do vilipendio e da gula dos outros,...


São palavras de martírio e perseguição,

Mas fortes,

Encorpadas,...


E únicas 

                              Tirado daqui

2024/10/20

...o amor tatuado

 Nesta rede de fitas velhas,

E arredondadas,

Uma valsa,

Duas danças finitas e apresentáveis,...


A vontade,

O professor que se despede no último sorriso para pupilos,

A mãe que quer o amor tatuado na pele do filho,...


O sentido que no fundo falta,

Quando se escreve para o tempo,

Finito e que transpoem a medida de solidão,

Como o faço neste momento 

                              Tirado daqui

2024/10/19

...proximidade do mar


                                                                         Tirado daqui


Não era isso que estava escrito,
Recordo-me de poder ter sido sânscrito,
E questionava-se,
Acima de tudo a forma do mundo,
A sequência das coisas,...

Se a sorte viria efeminada,
Com voz e maneirismos de mulher resoluta,..

Era nesse instante,
Em que discutimos questionamentos,
A palavra da teologia sobre a prova dada da razão,
Que esta discussão surgiu,
E é como te digo,
Está escrito,...

Recupera a ordem das coisas,
E a proximidade do mar sobrevalorizará todos os equivocos,
Que sentimos ainda boiarem entre nós 

2024/10/18

...as escolhas que tinham de ser feitas


                                                                                  Tirado daqui

À minha espera estavam as mesmas pessoas de sempre. A dona Sofia, a velhota simpática do primeiro andar, que tinha sempre flores para acompanharem o meu sorriso. O vitorino, o apaixonado da dona Sofia. Sim, vitorino com vê pequeno porque ele próprio o pedia. Oitenta e sete anos de uma vida incompleta, já que era o primeiro a dizer aos outros que ainda lhe faltava ser ele mesmo. E às vezes a Lucrécia, naquele dia não pois supostamente estava adoentada. Era a artista do prédio. Tinha vivido em tantos sítios do mundo, a ponto de ser a pessoa mais desapegada que conhecia. Eu estava a chegar do estrangeiro. Estive fora semanas, por enquanto não digo onde, e regressava antes do tempo. A minha avó, último elo de uma família que já fora extensa, mas que nos ultimos anos se estava a consumir como a chama de uma vela, estava internada. Chamaram-me dizendo que ela queria ver-me, e percebi que estava prestes a entrar num recomeço. Vi-me com cinco anos, pela mão da minha avó, com um balão encarnado atado ao pulso, a olhar para um enorme navio colorido a entrar pela barra do Tejo dentro, num dia quente de sol. Era feliz na altura. Ela existia para me completar, e ser o meu amparo em todos os momentos menos bons. Fechei os olhos com mais força ainda, e vi-me a partir umas semanas antes. Ela nem me olhou. Permaneceu sentada no cadeirão castanho e gasto de napa preta, que sempre tinha sido o dela, e onde tantas vezes eu dormi no colo salvador daquela mulher. Agora voltava uma pessoa diferente, provavelmente para me despedir dela. E sentia-me triste. Despido de alma e de sentido. Mas capaz, por obrigação e por amor, de fazer as escolhas que tinham de ser feitas.

2024/10/17

Exatamente o que eu penso e sinto

 Com os anos a morte vai-se tornando familiar.

Quero dizer não a ideia da morte, não o medo da morte: a realidade dela.
As pessoas de quem gostamos e partiram amputam-nos cruelmente de partes vivas nossas, e a sua falta obriga-nos a coxear por dentro.
Parece que sobrevivemos não aos outros mas a nós mesmos, e observamos o nosso passado como uma coisa alheia: os episódios dissolvem-se a pouco e pouco, as memórias esbatem-se, o que fomos não nos diz respeito, o que somos estreita-se.
A amplitude do futuro de outrora resume-se a um presente acanhado.
Se abrirmos a porta da rua o que se encontra é um muro.
No nosso sangue existem mais ausências do que glóbulos.
Tento recordar-me: a casa dos meus avós, a Praia das Maçãs, episódios antigos, as horas gordas do relógio de parede ecoando na sala.
Deve ser tudo normal, certamente é tudo normal e não entendo. Venderam a quinta, o mundo encheu-se de pessoa.
Fomos tão poucos, dantes!
Escondia-me num canteiro a fumar, as nuvens passavam sobre as copas.
As flores nasciam, perfeitas, dos dedos do senhor José. Esqueceste-te das estátuas com o nome das estações, do roseiral?
Do mês de junho em que tudo era verde, nítido, claro?
De trazeres pilhas de livros para o jardim?
Que Antonio eras tu?
Dos versinhos que escrevias?
De ires ser escritor?
Tão fácil ser escritor, não é verdade?
Tão fácil respirar.
António Lobo Antunes