Às oito e um tostão do dia esquecido, perto do trocar do século, o homem que respondia por luís saiu de casa com o cachorro, ou as sobras dele, debaixo do braço. O bicho perdera o pio havia uns dois dias, e ficou tombado debaixo do lava-loiças da casa a esvair-se da vida . Passaram as horas com a monda do milho, a chuva certinha e cor de água barrenta que o céu de zinco deslizava cá para baixo, e só numa manhã como as outras, ali quando se atamancava um pedaço de pão seco com torresmos para comer antes do sol despir o pijama e se pregar no horizonte, é que o bicho deu nas vistas. Faltava-lhe metade de uma pata, e já só tinha as costelas à mostra. Deu ideia que tinha pisado uma daquelas armadilhas de pisar lebres que os caçadores da parte de cima da monte deixavam, cá em baixo, esperando que os bichos picassem o bocadinho de pão duro que lá estava, e depois ficassem a espernear até se esvaírem em sangue. O cachorro tinha ido para aquela casa mal tinha aberto os olhos. Gostava de dormir em cima do tapete de serapilheira , no alpendre da cozinha. Conheceu uma, duas, três donas daquelas que saíram sem deixar saudades da casa, até se transformar na única companhia daquele homem sem sentimentos, rude, e que costumava dizer dele mesmo que tinha um peito de pedregulho alentejano . O bichito deu o último suspiro, e nem uma lágrima rolou na cara áspera, bexigosa , e sempre de arame feita do senhor luís . Descobriu o cadáver escabroso do animal, e o primeiro pensamento que lhe veio, quase como uma bebedeira mal curada quando o sol nasce no dia a seguir, é que tambem já não faltava muito para o bicho bater a bota . Sentiu uma gosmazita na garganta, mas o mata bicho do meio da manhã, que guardava numa garrafa de água ras velha ao pé do lavatório, deixou lhe a goela normal. Ali depois do pino do sol, com o animal já embrulhado num resto de saco de batata nova, que lhe deixou só o coto da pata de fora, saiu de casa para ir deixa lo a qualquer lado. Cacimbava um bocado, próprio dos fins de janeiro nos sopés dos montes alentejanos ali para os lados de Borba, e em pouco tempo ficou com as botas cardadas cheias de uma lama castanha desmaiada . Quando chegou á estrada velha, viu lá ao fundo, a passo de caracol fumegante, o trator do vizinho de que não se lembrava o nome por não gostar dele, e começou a andar com o saco de batatas escondido debaixo do sovaco. O cheiro já era tipo carne esquecida há uma semana, e a roupa estava empapada numa mistura de cacimba e nhanha sem cor que o cão estava a deitar. Quando passou pelo conhecido baixou os olhos, e preferiu o silêncio a ter de se desfazer em explicações estupidas sobre o motivo de levar uma coisa a escorrer não sei o quê pela roupa abaixo. O outro fez lhe a vontade, e só se preocupava em não deixar que o velho trator que cuspia fumo como um dragão rouco tombasse nos solavancos daquele alcatrão esburacado e esquecido . A chuva já tinha parado, e o homem a que chamavam luís começou a sentir qualquer coisa estranha a tomar-lhe o corpo. Começou nas pernas, quando passou as ancas fez com que o passo se tornasse mais lento, e quando já lhe tornava o peito todo espicaçado , parou. Chovia a bom chover outra vez, e não dava mais para continuar com uma geleia verde que já lhe pintava o casaco, as calças , e até as botas que por esta hora já lhe travavam o passo a ponto de se afundar na lama . E foi então que achou que a cara já não estava molhada só da chuva, mas também de qualquer coisa que nem sabia o que era. Pensou que não devia estar ali. Pensou que estar sozinho no mundo é o mesmo que sentir o peso da terra a esmagar as costelas, fechado entre quatro tábuas. Chovia ainda com mais intensidade . O homem conhecido como luis tinha de fazer qualquer coisa. Pousou a serapilheira enlameada no meio da terra carregada de água, e terá chorado pela primeira vez na vida. Nunca se lembrava de se ter sentido tão desesperadamente mal. Tão capaz de ajoelhar em veneração à terra, esperando que alguma coisa mudasse o peso de chumbo no coração . Estar só é o final dos tempos , escrito com um planeta bombardeado de todos os meteoritos do mundo. Tudo acabou sem que a chuva parasse. Esgravatou a lama durante minutos a fio, e cavou um túnel sem ponta . O bichito teve um sítio para dormir para a eternidade , e ele: Aninhou-se ao lado daquele féretro, e morreu de tristeza ...
2018/01/06
Interior mente
Às oito e um tostão do dia esquecido, perto do trocar do século, o homem que respondia por luís saiu de casa com o cachorro, ou as sobras dele, debaixo do braço. O bicho perdera o pio havia uns dois dias, e ficou tombado debaixo do lava-loiças da casa a esvair-se da vida . Passaram as horas com a monda do milho, a chuva certinha e cor de água barrenta que o céu de zinco deslizava cá para baixo, e só numa manhã como as outras, ali quando se atamancava um pedaço de pão seco com torresmos para comer antes do sol despir o pijama e se pregar no horizonte, é que o bicho deu nas vistas. Faltava-lhe metade de uma pata, e já só tinha as costelas à mostra. Deu ideia que tinha pisado uma daquelas armadilhas de pisar lebres que os caçadores da parte de cima da monte deixavam, cá em baixo, esperando que os bichos picassem o bocadinho de pão duro que lá estava, e depois ficassem a espernear até se esvaírem em sangue. O cachorro tinha ido para aquela casa mal tinha aberto os olhos. Gostava de dormir em cima do tapete de serapilheira , no alpendre da cozinha. Conheceu uma, duas, três donas daquelas que saíram sem deixar saudades da casa, até se transformar na única companhia daquele homem sem sentimentos, rude, e que costumava dizer dele mesmo que tinha um peito de pedregulho alentejano . O bichito deu o último suspiro, e nem uma lágrima rolou na cara áspera, bexigosa , e sempre de arame feita do senhor luís . Descobriu o cadáver escabroso do animal, e o primeiro pensamento que lhe veio, quase como uma bebedeira mal curada quando o sol nasce no dia a seguir, é que tambem já não faltava muito para o bicho bater a bota . Sentiu uma gosmazita na garganta, mas o mata bicho do meio da manhã, que guardava numa garrafa de água ras velha ao pé do lavatório, deixou lhe a goela normal. Ali depois do pino do sol, com o animal já embrulhado num resto de saco de batata nova, que lhe deixou só o coto da pata de fora, saiu de casa para ir deixa lo a qualquer lado. Cacimbava um bocado, próprio dos fins de janeiro nos sopés dos montes alentejanos ali para os lados de Borba, e em pouco tempo ficou com as botas cardadas cheias de uma lama castanha desmaiada . Quando chegou á estrada velha, viu lá ao fundo, a passo de caracol fumegante, o trator do vizinho de que não se lembrava o nome por não gostar dele, e começou a andar com o saco de batatas escondido debaixo do sovaco. O cheiro já era tipo carne esquecida há uma semana, e a roupa estava empapada numa mistura de cacimba e nhanha sem cor que o cão estava a deitar. Quando passou pelo conhecido baixou os olhos, e preferiu o silêncio a ter de se desfazer em explicações estupidas sobre o motivo de levar uma coisa a escorrer não sei o quê pela roupa abaixo. O outro fez lhe a vontade, e só se preocupava em não deixar que o velho trator que cuspia fumo como um dragão rouco tombasse nos solavancos daquele alcatrão esburacado e esquecido . A chuva já tinha parado, e o homem a que chamavam luís começou a sentir qualquer coisa estranha a tomar-lhe o corpo. Começou nas pernas, quando passou as ancas fez com que o passo se tornasse mais lento, e quando já lhe tornava o peito todo espicaçado , parou. Chovia a bom chover outra vez, e não dava mais para continuar com uma geleia verde que já lhe pintava o casaco, as calças , e até as botas que por esta hora já lhe travavam o passo a ponto de se afundar na lama . E foi então que achou que a cara já não estava molhada só da chuva, mas também de qualquer coisa que nem sabia o que era. Pensou que não devia estar ali. Pensou que estar sozinho no mundo é o mesmo que sentir o peso da terra a esmagar as costelas, fechado entre quatro tábuas. Chovia ainda com mais intensidade . O homem conhecido como luis tinha de fazer qualquer coisa. Pousou a serapilheira enlameada no meio da terra carregada de água, e terá chorado pela primeira vez na vida. Nunca se lembrava de se ter sentido tão desesperadamente mal. Tão capaz de ajoelhar em veneração à terra, esperando que alguma coisa mudasse o peso de chumbo no coração . Estar só é o final dos tempos , escrito com um planeta bombardeado de todos os meteoritos do mundo. Tudo acabou sem que a chuva parasse. Esgravatou a lama durante minutos a fio, e cavou um túnel sem ponta . O bichito teve um sítio para dormir para a eternidade , e ele: Aninhou-se ao lado daquele féretro, e morreu de tristeza ...
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Etiquetas
'abrir os olhos até ao branco'
(2)
'Depois de almoço'
(9)
'na terra de'
(2)
abstracao
(1)
abstração
(19)
abstrato
(197)
Absurdo
(62)
acomodações do dia
(1)
acrescenta um ponto ao conto
(1)
alegria
(2)
alienação
(1)
amargo
(4)
análise
(1)
animado
(2)
animais
(4)
aniversário
(11)
antigo
(1)
antiguidade
(1)
atualidade
(2)
auto
(1)
auto-conhecimento
(4)
autor
(12)
Blog inatingiveis
(4)
blogue
(10)
breve
(4)
casa
(1)
casal
(1)
coletâneas
(2)
companhia
(1)
conformismo
(3)
conto
(4)
Contos
(61)
corpo
(5)
crónica
(1)
crossover
(4)
cruel
(1)
curtas
(8)
Dedicatória
(22)
Denúncia
(2)
depressão
(6)
dia da mulher
(1)
Dia Mundial da Poesia
(7)
Diálogo
(6)
diamundialdapoesia
(2)
dissertar
(10)
divulgação
(1)
do nada
(5)
doença
(1)
escrita criativa
(1)
escritaautomática
(10)
escritores
(12)
escuridão
(2)
pessoa
(5)
pessoal
(29)
pessoas
(13)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Acha disto que....