2020/11/11

Isto saiu de uma penada, e sei que devia ter continuado. Mas lá veio o habitual sentimento de que não é bom o suficiente🙄

 Certo dia, o homem sem nome chegou mais cedo do que habitual à rua onde eu vivia.

Habituara-me a ver como ele se insinuava às pessoas sem se apresentar, e aproveitava-se do que as pessoas não lhe davam, por andarem absortas nas respetivas rotinas de todos os dias, para lhes tirar anos de vida. Fazia-o sem pedir licença, a pentear o cabelo crespo e parcialmente grisalho para trás, e distribuindo olhares de soslaio, por entre sorrisos mais cheios de perguntas do que de respostas.

Naquele dia chegava mais cedo. Estacionou o carro branco,  e de linhas deformadas, mesmo em frente ao mini mercado do velho Malaquias, e saiu. Ainda entrou na porta de madeira apodrecida, desviando com cuidado desmesurado a cortina de missangas que as pessoas já se tinham habituado a ouvir como qualquer coisa que hipnotizava, ao invés de um simples atavio que nem sequer servia para impedir a entrada das moscas que se dançavam a si próprias até à morte.

Pegou em dois pêros raquiticos, castanhos esverdeados, colocou-os num saco, fez um nó improvisado. Abeirou-se do velho Malaquias, e só se dignou a perguntar quanto custava com um olhar que eu nem consegui ver, pois do homem sem nome só estava a conseguir ver as costas rectangulares, que naquele dia estavam como que embrulhadas numa capa de chuva que ele vestia, apesar de a manhã até estar com um calor que quase era metálico.

Saiu, o saco preso entre os dedos anelar e médio da mão direita. Na outra mão segurava um porta chaves, de onde pendiam as chaves do carro, e uma pequena bola russada de futebol, que me lembrava um novelo de cotão que dia sim, dia não, apanhava nos cantos da minha sala.

Desceu a rua com passos acelerados, mas irregulares. Parecia à espera que alguém lhe saísse ao caminho. De vez em quando parava, levantava os olhos com hesitação, e eu já tinha dificuldade em vê-lo. Já só conseguia perceber as suas costas rectangulares ao longe, encimadas pelo cabelo irregularmente grisalho que parecia fazer daquela pessoa uma daquelas chatas com vela de pano, que me recordava ver sair para a pesca quando o meu avô me levava a passear junto à Foz do rio que sempre baptizou todos os meus medos, e alguns dos meus anseios.

Naquele dia, como já tinha aqui começado a explicar, as coisas fugiram um pouco à regra. Este homem chamava-me a atenção por razões que eu nem conseguia sequer explicar. Talvez porque já sentia os trinta a pisar-me as costas, e ansiava escrever qualquer coisa que se parecesse com um romance. E aquele homem surgiu-me, pela primeira vez na vida, como uma possibilidade de personagem. Alguém que, desde que bem observado, descrito com contornos quase impressionistas, talvez me levasse a uma história de culpa, de ambição desmedida, de amores por explicar, e vícios escondidos a sete chaves no silêncio de um móvel centenário de quarto secular.

Por isso resolvi segui-lo. Depois de vestir um fato de treino velho, e calçar umas sapatilhas de futebol já rasgadas na biqueira, que foram a unica cobertura que arranjei naquele momento, sai de casa.

O céu tinha escurecido um pouco, e um quarto do sol, que aquela hora já quase se descobria na totalidade por cima do pincaro da igreja, parecia estar escondido atrás de nuvens cor de cinza.

Contornei a esquina do palacete devoluto que ficava do outro lado da estrada da rua onde ficava a minha casa, e acelerei o passo. Temia já não o conseguir encontrar. Levava um bom avanço, e eu arriscava-me a encontrar pessoas conhecidas. Aquela hora era habitual dar de frente com dois ou três bêbados meus vizinhos, que já regressavam a casa em busca do almoço completamente sem tino e prontos para bater nas mulheres se preciso fosse. Vi um deles, o anacleto, o soldador reformado que naquele dia, e ainda bem, nem me viu.

Acabei por encontrar o homem sem nome já na descida para o Porto da cidade. Era uma rua de que gostava muito, pois garantia vida durante quase todo o dia. Aquela hora estava cheia de homens que entregavam encomendas nos cafés, e de velhotas que arrastavam pesarosamente os carrinhos de compras como se a vida delas já nem dependesse disso.

O homem sem nome estava parado junto a um quiosque de jornais. Só ali reparei, com um pouco mais de pormenor, que tinha uma pêra irregular que lhe cobria a boca, e descia quase ao nível do externo, dando-lhe um ar inexplicável de confúcio arrependido. Quase amargurado de tanto medo que guardava por explicar.

Parei como se nada fosse. Pus a mão direita no bolso das calças velhas de treino que trazia, e reparei que guardava, amarfanhado, um maço com alguns cigarros. Deviam estar ali desde que eu prometera, pela enésima vez, deixar de fumar. Acho que havia alguns dias estar a conseguir cumprir, mas pronto.... Como um homem é um ser que se contenta com os seus falhanços, saquei do cigarro que me pareceu em melhor estado. Passou um velhote com cara de político ao meu lado, a fumar cachimbo, e pedi-lhe lume. Parecia ter já construída uma imagem de transeunte sem nome, e por isso pus-me imóvel, numa posição quase diagonal à bissetriz da rua, a dar baforadas nervosas. Observava o homem que me  tinha dignado a perseguir, e sentia-me clandestino. Talvez fosse essa a melhor forma de me consolidar com o ambiente em que me encontrava. Eu nunca tinha tido a aspiração de ser escritor. Aliás, eu sempre abominei letras. Punham-me nervoso, receoso de me entregar a elas, quase como se elas me pudessem engolir e nunca mais me vomitar. Só que me encontrava num momento da minha vida em que precisava de uma decisão radical. E era isso. Pus-me então a tentar captar todos os pormenores que conseguia daquela pessoa que eu só tinha visto um punhado de vezes antes.

O sino da Igreja do meu bairro, que só ouvia muito ao longe tal a distância a que me encontrava do meu mundo, soou duas badaladas. Era meia hora talvez próxima do tempo de almoço.

O homem sem nome recomeçara a andar. Reparei que tinha comprado dois maços de tabaco, um jornal que me pareceu desportivo, e uma coisa retangular que eu não conseguia descortinar. Continuou a desenvolver passos em direção ao Porto. Acho que ainda não tinha visto que estava a ser seguido, e eu começava a sentir-me mal com a intromissão... 

6 comentários:

  1. Muito bom para uma abertura e com grandes espaços a serem preenchidos. Um texto interessante e que desperta curiosidade. Dê outros passos e continue. Não se subestime . Vale a pena. Gostei!!!!! Abraço.

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  2. Eis uma história que merece continuação.
    Rica em pormenores que o comum transeunte raramente repara, mas que neste caso ganhou realce e despertou o interesse do leitor.

    Achei curioso o peso dsos trinta nas cotas do narrador. Ele que espere até chegarem os 'entas' e então é vai sentir com eles pesam... :-)

    Continue, continue, que isto ainda mal começou.

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  3. Uma história que merece continuação, eu gosto de coisas misteriosas, e que nao consigo descrobrir à priori.
    Mas fico por aqui, da próxima vez também sigo o homem sem nome.
    Talvez tenho um....bastante Sedutor!

    :(

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Acha disto que....