2021/01/31

A última possibilidade sóbria de ser racional num mundo assustadoramente ímpio

 a existência tem um término 

averbado,

como documento rasurado de transferência

de posse,

dizia Maria,

assoberbada,

encavacada até,

ela que enumerava as inconsequências 

de simplesmente,

andar por cá,

sem se saber onde se

fazem leituras de cozinhados,

somas de catetos de circunferências

irremediáveis,....


e tudo caminhava para

que ao dealbar da noite,

não restassem sombras que tricotar




2021/01/30

Arrumado em compartimentos




 os dias curtos,

o sol debaixo das minhas mãos,

seria um testamento incompleto,

sem a resposta certa a todas as 

questões sem cor,....


um tempo que não custa dinheiro,

e disseram-me para o provar,

que dominamos as palavras,

não os dias,

somos a lâmina que desbasta o cabelo

da ansiedade,

e havia mais qualquer coisa além do

que a noite,

depositava em cachos nos nossos regaços,...


havia mais qualquer coisa,

porque tudo o que não tem nome,

está lá sem sabermos

Free speech for the dumb

 


Inconsequência

 ou paz ou felicidade, deixa que te ensine da forma como for conveniente, não importa a resolução do que considerares incerto, só a música dos momentos certos, na solução errada, e de tudo o que for errado, vestido de problema impossível,....

 há mais instantes inconsequentes, porque esta música a continuar assim, não acabará sem que se queira alterar, a impressão digital que optares como inconsequente 



2021/01/29

Um dia gostava de saber escrever assim

 

josé saramago / poema para luís de camões

 
 
Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho para,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta.
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas fontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.
 
Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.
 
 
 
josé saramago
provavelmente alegria
caminho
1987

fiéis da transparência

 eu não podia tocar de ouvido,

nem ouvir o que restasse de uma 

sextilha de sons,

mal tocados,

irrisórios,

que passavam pelos intervalos do ar,

até lamber a desfaçatez habitual da 

distração das pessoas,....


não percebia,

ao dizeres-me que a audição dos

que amamos,

é oca,

sem miolo de esquecimento,...


e por não perceber,

arrastava o meu corpo na

areia,

de todas as praias que conseguisse,

desenhando nomes inconcebíveis,

datas que hão-de vir,

sentimentos por inventar,

à espera se calhar que o tempo

inche,

e expluda,

e só restemos nós,

como fiéis da transparência




2021/01/28

Arrazoar

 todos os pássaros que conhecesse,

os mesmos que me nasciam da ponta 

dos dedos,

e arrebitados de sensações,

arrazoavam o habitual,

inventavam novas palavras em cruz,

nas conversas irregulares com os 

livres de espírito,

os chamados solitários de ocasião,.....


nada me liga a criaturas de meio

termo, 

como estas,

só opto por escrever o dealbar da luz que

delas sempre vejo,

e ao repetir,

ocasião após ocasião, 

todo um testamento me

deixa ligado,

a este programa de sociedade,...


e assim apago

mais um dia,

sem que consiga esperar

por outro igual




2021/01/27

Um dia gostava de saber escrever assim

MONÓLOGO DO 1.º CORNUDO

I
Acordei um triste dia
Com uns cornos bem bonitos.
E perguntei à Maria
Por que me pôs os palitos.

II
Jurou por alma da mãe
Com mil tretas de mulher
Que era mentira. Também
Inda me custava a crer...

III
Fiquei de olho espevitado
Que o calado é o melhor
E para não re-ser enganado,
Redobrei gozos de amor.

IV
Tais canseiras dei ao físico,
Tal ardor pus nos abraços
Que caí morto de tísico
Com o sexo em pedaços!

V
Esperava por isso a magana?
Já previa o que se deu?...
Do além vi-a na cama
Com um tipo pior do que eu!

VI
Vi-o dar ao rabo a valer
Fornicando a preceito...
Sabia daquele mister
Que puxa muito do peito.

VII
Foi a hora de me eu rir
Que a vingança tem seus quês:
«O mais certo é práqui vir,
Inda antes que passe um mês».

VIII
Arranjei-lhe um bom lugar
Na pensão de Mestre Pedro
(Onde todos vão parar
Embora com muito medo...)

IX
Passava duma semana
O meu dito estava escrito
Vítima daquela magana
Pobre tísico, tadito!

DUETO DOS 2 CORNUDOS

X
Agora já somos dois
A espreitar de cá de cima
Calados como dois bois
Vendo o que faz a ladina

XI
Meteu na cama mais gente
Um, dois, três... logo a seguir!
Não há piça que a contente
É tudo que tiver de vir!

S. PEDRO, INDIGNADO, PRAGUEJA.

XII
- É de mais!... Arre, diabo!
- Berra S. Pedro, sandeu.
–E mortos por dar ao rabo
Lá vêm eles pró Céu!

CORO, PIANÍSSIMO, LIRISMO
NAS VOZES

XIII
Que morre como um anjinho
Quem morre por muito amar!

CORO, AGORA NARRATIVO
OU EXPLICATIVO.

Já formemos um ranchinho
De cá de cima, a espreitar.

XIV
Passam meses, passa tempo
E a bela não se consola...
Já semos um regimento
Como esses que vão prá Ingola!

(ÁPARTE DO AUTOR DAS COPLAS:
«COITADINHOS!»)

XV
Fazemos apostas lindas
Sempre que vem cara nova.
Cálculos, medidas infindas
Como ela terá a cova.

XVI
Há quem diga que por si
Já não lhe topou o fundo...
Outros juram que era assi
Do tamanho... deste Mundo!

XVII
- Parecia uma piscina!
–Diz um do lado, espantado.
- Nunca vi uma menina
Num estado tão desgraçado!

APARTE DO AUTOR, ANTIGO MILITANTE DAS ESQUERDAS (BAIXAS).

XVIII
(Um estado tão desgraçado?!...
Pareceu-me ouvir o Povo
Chorando seu triste fado
nas garras do Estado Novo!)

XIX
O último que chegou cá
Morreu que nem um patego:
Afogado, ieramá,
Nos abismos daquele pego.

O CORO DOS CORNUDOS,
ACOMPANHADO POR S. PEDRO EM SURDINA,
ENTOA A MORALIDADE, APÓS TER
LIMPADO AS ÚLTIMAS LAGRIMETAS
E SUSPIRANDO COMO SÓ OS CORNUDOS SABEM.

XX
Mulher não queiras sabida
Nem com vício desusado,
Que podes perder a vida
Na estafa de dar ao rabo.

XXI
Escolhe donzela discreta
Com os três no seu lugar.
Examina-lhe a greta,
Não te vá ela enganar...

XXII
E depois de veres o bicho
E as maneiras que tem
A funcionar a capricho,
Já sabes se te convém.

XXIII
Mulher calma, é estimá-la
Como a santa no altar.
Cabra douda, é rifá-la...
- Que não venhas cá parar.

XXIV
Este conselho te dão,
E não te levam dinheiro...
Os cornudos que aqui estão
Com S. Pedro hospitaleiro.

XXV
Invejosos quase todos
Dos conos que o mundo guarda

FAZEM MAIS UM BOCADO DE LAMENTAÇÃO.
NOTA DO AUTOR: QUASE,
PORQUE ENTRETANTO
ALGUNS BRINCAVAM UNS COM OS OUTROS.
RABOLICES!

Mas se fornicas a rodos
Tua vinda aqui não tarda!

RECOMEÇA A MORALIDADE, ESTILO
ESTÃO VERDES, NÃO PRESTAM.
ALGUNS BÊBADOS, CORNUDOS
DESPEITADOS OU AMARGURADOS.
VOZES PASTOSAS.
DEVE LER-SE: VIIINHO...VÉLHIIINHO...

XXVI
Melhor que a mulher é o vinho
Que faz esquecer a mulher...
Que faz dum amor já velhinho
Ressurgir novo prazer.

FINALE, MUITO CATÓLICO.

XXVII
Assim termina o lamento
Pois recordar é sofrer.
Ama e fode. É bom sustento!
E por nós reza um pater.
Luiz Pacheco
Num dia em que se achou
Mais pachorrento.


Luiz Pacheco, Textos Malditos 

Religiões alternativas

 Agora é sério,

pelo menos há um mar,

duas ou mais margens,

e a intenção apócrifa de

não as percorrer,

ficando só pelo desejo 

carnal sem luz,....


há uma teoria animista,

com anotações específicas

para cada significado,

para cada divindade 

sem relação aos nós das

farsas sem ator,....


não me compete teorizar filosoficamente

sobre o que não entendo,

sou um pai sem receio de um futuro

eterno,

gozado num beijo de despedida




2021/01/26

Agnosticismo

https://entreastroepoesia.tumblr.com/post/641342236418801664

Burilar

 Escrevo a minha loucura,

Não como se me quisesse desculpar,

Aliás não será a minha culpa,

No sentido arredondado do termo,

Sentir que a palavra me burila dentro da minha própria casa,

Como que as paredes se encolham a ponto de me esmagar os ossos,

Viciar as entranhas,...


A sentir-me vivo com tudo isto,

Mas com uma série de entidades sem rosto a ratificarem estes devaneios,

Fazendo de mim exemplo de um qualquer tratado de psiquiatria clínica,

Com capa rasa,

E público inculto e seduzivel,...


E perdão se me inspiro na falha que existe entre o razoável, 

E o desesperante, 

Talvez já seja vício, 

De aprender a conviver com esta loucura 




2021/01/25

Aproveitar o sol


 aproveitar o sol,

dizias,

no meio de tanto impropério,

gente que nos desnudava com

incúria,

para depois depauperar o simples 

prazer da humanidade,

era de aproveitar o sol,...


falavas em todas as línguas

conhecidas,

e ao mesmo tempo em nenhuma,

como se sentisse todos os cheiros

da tua pele,

numa só réplica de paraíso,...


aproveitar o sol,

talvez houvessem versos a 

parir melhor,

com genética assim descrita

2021/01/24

Regozijo

 não sei se haverá 

algo mais a dizer,... 

esta é uma tarde 
de estanho, 
como para 
mim são as que não vejo o sol, 
e no sol cruzo os olhos 
com a indefetível tristeza 
de um céu sem cor,...

propuseste o lugar 
invisível dos sentimentos, 
com a banalidade
 associada de estar perto, 
do regozijo simples 
com coisas simples,... 

não aceitei, 
reservei-me a esse
 direito, 
e por isso nada 
mais haverá a dizer,... 

há um barco que 
descola deste porto, 
e eu quero imiscuir-me 
no que de trágico ele leva



2021/01/23

Músculo do poema

 hei-de falar em baixo

de todos os corpos,

a voz faltará,

o tronco purulento vai

desfazer-se em escaras,

sentia as pernas que agora

se desfazem,

infiltrando-se pela terra,...


se me sobrar os ninhos

da ideia,

o que daí advir,

talvez me faça chegar ao músculo

do poema




2021/01/22

Transportar inocentes

 Acordava com o soluçar,

Um somar de desilusões encafoadas debaixo da cama,

Levantava-se para ir comer duas frases sem sabor,

E saía de casa,

Caminhava inocentemente para o transporte dos inocentes,..


Sentado no banco de trás,

Esperava não ser visto enquanto decifrava rostos,

Gastava notas mentais em todos os idiomas que conhecia,

Até sair para a rua,

O tempo que preferia era a chuva engole rostos,

O que menos gostava sempre foi o sol,...


Aceitava regressar a casa com uma brisa dos números repetidos,

E (no meio das frases feitas que toda esta rotina significava),

Tudo se repetia no dia seguinte,

Algum dia iria acabar,

Só não sabia quando



2021/01/21

Pedra genocida

 


Diziam-nos que éramos genocidas,

Teríamos assim perdido o caminho para uma razão melhorada,

Novas visoes de uma cisão possível,

Ao longo desta maneira tosca de organizar as coisas,...


Nunca foi o que quisemos,

Essa coisa possível de ser destruidor de rotinas,

Mas mesmo assim sentia sermos tomados como opulentos,... 


Se calhar já nada havia a fazer,

Ao longe percebiam-se os lábios pouco solitários da loucura 

2021/01/20

Fluxo gástrico

 

Uso o intruso para um bem maior,

Tanto amor sem dizer de cor,

Farto fluxo de lage ao céu,

Amiúde estrago,

Sem reparar,

Ao lado da cor,

Sem o opaco presente,...


Nada de mais,

Só a residência da certeza, 

Sem que dela se extraia a doença,

Certa para reparar,

Inocente no respirar,

E no fim abstrusa,

Marca de solidão

2021/01/19

Desumanizar

 Se queres saber,

Ainda é a mesma hora de doer as letras,

Como se lembrar uma fresca e inodora reflexão de despedida, fosse o mesmo que te anunciar que sou iletrado,

Não entendo o coração deste autor,

O egoísmo do outro,

Não entendo sequer que possa haver diferentes formas de amor na criação,...


Para que mesmo assim saibas o que pretendo, 

Repara neste esgar de preocupação, 

Não é meu, 

Emprestaram-mo sem opção de retorno, 

Quando me desumanizei





2021/01/18

Mal observado

 

Puta,

Mil vezes repetido,

Era um gigante empedernido,

Gritava-lhe aos ouvidos,

Puta,

Soava mal,

A comida estragada,

A meninos tão mas tão doentes,

E mesmo assim continuava,

Puta,

Recitado ao expoente próximo à loucura,...


Havia de fazer mal as contas para prosseguir um caminho mal escrito,

E ser sempre puta pesava,

Até que uma voz,

Correta e apaixonada,

O pudesse corrigir com laivos de certeza insegura

2021/01/17

Um dia gostava de saber escrever assim

 não nenhum fim em vista justifica

esta hora de carne de compêndio
de tudo o que sonhei o grito fica
em bailundos que atacam o incêndio
 
um homem impassível verifica
ponto por ponto o nível da cascata
que foi de quartzo feldspato e mica
agora espanto pénis pus e pata
 
nem um rato que fosse   nem um verme
nem um   no hemiciclo sopra e geme
aqui ou no rossio ou na avenida de berne
 
quem não deve não teme
devoremos o cherne
com dvorjak ao creme
 
 
 
 
mário cesariny
primavera autónoma das estradas
assírio & alvim
1980

Anotações infernais de qualquer coisa



 tanto tempo depois,

ainda me correspondo comigo

mesmo,

termino missivas com um silêncio

propositado,...


depois de as começar com a intenção

que a vida sempre me deu,

de ser afetuosa,

incandescente até,

mas fazendo-o com anotações

de hipocrisia,

bocas cheias de pecado que

me dizem,

tanta coisa que nem entendo,...


por isso, 

este hábito de me corresponder

com o que resta de folhas,

amarfanhadas,

hesitações pequeninas,

mas que estão lá,

e a minha criação emprenhada,

de tanta coisa sem peso

2021/01/16

Liberdade, a possível

 


tinha ganho de presente um olhar,

dois olhos,

um espelho a servir de boca,

duas indecisões como braços,

e as pernas possíveis quando

só se ouvia o vento,....


dizia querer a lua e um céu esquartejado,

mas a cada passo só ganhava uma 

reflexão,

dores nas metáforas de solidão,

e tanta vontade de iniciar

o sono indolor,...


só que os dias consentiam-lhe a 

comiseração,

e tudo doía,

o mesmo que um sol oculto,

e mais que nuvens com rosto

de amor

Amadurecido

 um clique ajuda a perceber 

as coisas,

a partir de agora é

sempre igual,

apanhamos o barco,

há sol,

só o suficiente para que nos

escondamos por entre 

o empedrado das nuvens,

na terra molhada,...


contorna-se a costa até

perder de vista,

até que o desembarque se faz

num pontão em forma de coração,

onde as pessoas amadurecem como 

o espírito de cada um,

mas fazem-no com ponderação,

sem pressas,

como se fossem anéis nos dedos

de viúvas conformadas,....


e há agora mais luz,

menos especulação nas desculpas

que damos para prosseguir,

só se olha em volta,

e o silêncio casa connosco,

sem que deixemos




2021/01/15

Ao colo



 Sinto-me ao colo da minha mãe,

tenho uns cinco anos rasteiros,

sinto-me indefeso,

a chorar,

as árvores perguntam-me se

nunca saí dali,...


encontro-me parado na rua,

as pessoas habituais,

as sem cara,

passam-me ao lado,

e não saio do colo de minha mãe,....


há uma conversa qualquer 

sobre um menino doente,

choro,

a rua não tem carros,

e uma mulher gasta passa por

mim,

com um riso que mais me 

inquieta,...


eu próprio recebo o silêncio

que de mim enviei,

e hoje sou triste,

tão triste

2021/01/14

Nubência

 O som das minhas loucuras,

Os passos dos inconseguimentos que ainda não descrevo,

E já é tão tarde,

Como se todo o mundo arrendondasse a esperança que tenho na nubencia,

Na virtude explicada da razão,...


Se me sinto fraco para continuar a errar nas ilusões das palavras,

Delas espero a beleza que me redima,

Aproximado que estou da redoma da vulgaridade




2021/01/13

Um dia gostava de saber escrever assim

 É uma mulher antiga. Queixa-se da manhã glacial em morno amarume, "Ai,senhor António, até sinto o frio a entrar nos ossos." Fosse António um operário a quem o fiscal de obras perguntasse "O que fazes, aqui?", não responderia "Estou a construir uma catedral". Diria, quem sabe, "Trabalho para ganhar o meu pão". A resignação diligente habilitou-o com razoável destreza a tirar um café quase perfeito e a discorrer sobre a forma ideal da chávena ou a desejável temperatura da máquina. Vai-se-lhe o olhar adiante do verbo, aconchegando a mulher que se despede em ângulo agudo, devido às cruzes, "O pior é a saudade dos abraços e das coisas boas que perdemos; se ao menos nos deixassem tirar o açaime...". 


A saudade de que ela fala não é a "realidade essencial" erguida "à altura duma religião", como a definiu Pascoaes, mas a soma de perdas, de pequenos prazeres escoados, a raspadinha de tantas privações. Poderia ordenar um cadáver esquisito das suas paciências em solitude com as palavras que correram no ecrã enquanto o vocabulário lhe minguava: discriminação, covid-19, pandemia, sem-abrigo, infodemia, zaragatoa, saudade. 

Saudade, a palavra do ano na votação promovida pela Porto Editora, alinha, em letra minúscula, os eclipses da alegria que legendam o rosto da mulher devolvida, em ângulo agudo, à invernada. Se, ao menos, pudesse "tirar o açaime". 

Já a palavra máscara nem sequer foi a votos mas é-lhe tão afrontosa, espécie de zaragatoa ao pensamento, aflição em folha-de-flandres como a dos atavios de escravidão descritos por Machado de Assis, no início do conto "Pai contra Mãe", nas Relíquias da Casa Velha: "Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham, penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras." 

Um século depois, Bia Bulcão, a atleta brasileira que estagiou em Portugal à espera de vaga nas Olimpíadas de Tóquio, entrevistada pelo jornal O Globo, fala com ironia das regras apertadas. "Na esgrima", diz ela, "já estamos acostumados, é sempre de máscara." 

E a mulher antiga, em ângulo agudo, a vida inteira sem aulas de esgrima: "Todos os dias agradeço a Deus esta depressão que me anima."» 

Retirado de:

sapatos

 indigno de calçar estes sapatos,

de usar a roupa que tantos

gastaram,

com insuficiente compreensão

de novas racionalidades,

da explicação que a literatura dá

para o falhanço,...


sentindo afã de escrever só o suficiente

para que não me chova mais,

para que o sol irrompa na

casa vazia a que optei,

por não regressar,...


tudo se enche de ar apodrecido,

as coisas revelam o que nós 

lhe permitimos,

não terei como te disse,

sapatos dignos para encher,

até porque de sapatos não

preciso,

só de caminho que me gaste 

o espírito,

renovando a carne que vou

tendo por gastar




2021/01/12

Poema pouco explicito


 Notava-se a diferença dentro deste ano, 
com meses que demoravam a passar, 
e dias estranhos, 
como duas rosas estremunhadas 
que acordam da noite cega, 
não havia conversa possível 
para as pessoas, 
sentia-me incapaz de 
te explicar a bússola, 
por onde hás-de ir 
quando ao voltares 
percas a vontade de regressar,
 deixava-te assim um lápis 
na mão, 
uma coisa tosca, 
apenas algo com que 
pudesses rabiscar o desejo, 
e vesti-lo de sombrias hesitações, 
e à volta dele depois voltasse 
a haver tempo, 
porque sentia a falta dele, 
dos minutos a espernearem, 
dos segundos que os ouvia a 
conversar como velhas que 
vomitam só escatologias, 
sem o saberem,...

Há margem agora 
para um beijo 

2021/01/11

Ignotos

 Sou um museu fechado aos ímpios,

Aos impuros,

Em mim só com livros sem uso,

De páginas a fio  em branco por analfabetismo literal dos leitores,

Se pode entrar e ficar,...


Deixei-te pois à porta,

Com o argumento de que no país onde governo,

Cada dia é feriado para os ignotos,

Sempre que decido,

Por decreto assinado a lágrima sem cores




2021/01/10

What if our minds don't exist?


 

Música do passado



 Em que te homenageei,

que não devia,

quais foram as hesitações incompreendidas

que,

ao deixares pelo caminho,

te renovaram a ansiedade,

me propuseram ser mais reflexivo,

escolher as palavras com que

te blasfemo a pele,

num não saber de maldade,...


acredita,

que ao não o desejar,

reforço tanto desejo,

quase que me visto nele,

sabendo que do dia não virá

a anulação de querer escrever,

no caminho que desbravas,...


se nada disto fizer sentido,

o meu presente para ti,

é a música do passado

2021/01/09

Lembrar e fugir

 lembrava-se da mãe,

do que lhe dizia abrigada da chuva,

para preservar momentos em vez,

de embalar indecisões,

para se dizer insuficiente a quem

o quisesse menorizar,

tanta coisa que por se lembrar

dela,

cada dia custava menos

ser só,

abundantemente só,

tão só que o dedos dos pés

lhe doíam de tanto fugir,

   da própria solidão,....


e claudicar à entrada de uma

invisível melhoria de sentir,

parecia errado,

por isso iria continuar,

agora sem se lembrar do que

tinha anotado,

nos trapos que vestiu em criança




2021/01/07

Soturno

 

cuidado onde tocas, uma coisa é o céu, e o divino que ele encerra, outra é vir sempre à mesma hora, com o mesmo intuito, e beijando a mesma boca, para participar numa vetusta denúncia de solidão,.... 

apelando ao sentimento, as portas de luz abrem-se o suficiente para escapares desta rotina, pelo que amanhã há mais desta fornada de alimento para a alma


2021/01/06

Primeira criação em tempo real do Inatingível em 2021

 


Diziam ao escritor que antes até de ele nascer,

Havia um rio que o esperava,

Acordado,

Que se recusava a correr para a Foz,

E dizia que nunca tinha passado pelo caminho que se seguia à nascente,...


Numa situação normal, 

O escritor percebeu este trauma,

Quase como que um desígnio idiota,

Mas que está lá,

E o obriga a andar à chuva,

Como se ela o possa levar,

Através de um carreiro irregular e de cores transparentes,

A um destino onde todos os gritos do mundo estão acondicionados,...


E ele assim possa publicitar as suas próprias frustrações,

A quem tenha medo da vida,

Mas ainda conhecimento e inocência para ouvir,...


A cada escritor um momento sério,

Sem este rio que ninguém vê,

Ele não é o filho desejado da liberdade que as suas roupas mostram 

Beira rio

 

pequenas pedras, 
brancas ou rosas, 
achar que tudo são
 influências, 
de atirar as coisinhas a um lago, 
e esperar que
 aquelas coisas 
concêntricas, 
nos engulam, 
sofregamente, 
e depois te cuspam 
para o sítio onde estás,...

e tudo se repita 
de novo,... 
há músicas
 descontadas ao silêncio,
 que soam assim



2021/01/05

Letras de farsa

 quando ouvi o leve toque na porta,

comecei a rasgar pa

péis,

dezenas de estórias presas por

pouco,

com destino infeliz,

novenas de incertezas eunucas

na lapela,

das senhoras da missa,

dos cavalheiros que escondem solidão

com atrevimento,

e vilania,

com pequenas doses de bom senso,

encaixado no passar indómito

do tempo,....


por me deixares ver o teu sorriso,

tudo isto será

à borla,

para ti,

prometo contar-te com pê de

poema,

e jota de 

jocoso,

e até Á,

de avareza,

todas as letras que queiras,

porque eis-me sem palavras,

para um recôndito falhanço,

de caráter


2021/01/04

Verbo fazer

O que te achei melhor dizer,
 Os desenhos do que inspiro,
 O sangue pisado do que apenas consigo expirar, 
Tudo anda lá em cima,... 

 Não entendo se a vaguear,
 Ou à procura dos vagalumes tímidos, 
O que ainda recordo chamar aos teus olhos, 
 Na origem deste céu, 
Esteve o que deixámos por dizer, 
O que nunca fizemos, 
E agora, 
 o que permanece por desenhar neste argumento sem final feliz

2021/01/03

Fab,.... 4 times!!!

 


Untitled

 Não deixarei nada por escrever,

Prometo recompensar-te quando já não for de mim que falas,

E expelires o prazer pelos poros nas formas únicas,

E unicelulares como a tua felicidade ensinava de tempos a tempos,...


Lembro-me haver um homem em cada uma das paragens que fazias para me inspirares,

Não teria nome,

Idade sem pele,

Estava ali para marcar o dogma de que a terra é redonda,

E a saudade um saco vazio que já teve todo o ouro do mundo,...


Arranjo forma de nada ficar por descrever,

Se da tua nudez vier a luz que preciso para as metáforas




2021/01/02

Um dia gostava de saber escrever assim

 a noite forra o quarto como uma

longa viagem do corpo entre pedaços de algodão

tenho marcas sem cor pelos braços
restos de palavras já usadas

preciso do umbigo para rematar
os vazios que cosi à pele

todas as palavras com o peso de a noite ainda ser noite



Maria Sousa

Luzes

 E a cada época as luzes suficientes,

A escuridão medida,

Não se achava apta a recordar o que se passara,

Nem prever o fim das estórias que viessem,... 


Só sozinha,

A sentir o tempo como num roteiro por entre a pele,

Que entrava e saía de cada Poro,

Como se a vida não se visse,

Só se sentisse,

E se escrevesse,...


A mais ou menos possibilidades de loucura,

A resolução terminava com um suspiro,

A vida recomeçava nesse momento




2021/01/01

Bem vindo Inatingivel 2021....Aqui estamos para te sentir


 o meu limite são dois olhos baços, 

luz indiferente,

cartas insuficientes espalhadas

numa casa vazia,

sem forças,

com pernas inconstantes e

que já não vão,..


em todos os começos,

com os fins desenhados pela incoerência em que me situo,

vivo de renovações,

assuntos que vão, 

e não regressam,

dívidas infindas,

e assim me desalinho do

caminho,

que nunca escolhi

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