2020/12/25

O Inatingivel oferece uma prenda de Natal alienante....

 «Temos frequentemente a sensação de que será perigoso olhar, e por isso há uma tendência para desviarmos os olhos, ou mesmo para os fechar. Por causa disso, é fácil ficarmos confusos, não termos a certeza de que estamos realmente a ver a coisa que pensamos estar a ver. Pode dar-se o caso de estarmos a imaginá-la, ou a confundi-la com outra coisa qualquer, ou a lembrar-nos de qualquer coisa que vimos antes -- ou, quem sabe, que talvez tenhamos imaginado antes. (...) Não basta olharmos e dizermos para nós mesmos: «estou a olhar para aquela coisa». Porque uma coisa é dizermos isso quando o objecto que temos à nossa frente é, por exemplo, um lápis, ou um bocado de pão. Mas o que é que acontece quando damos por nós a olhar para uma criança morta, ou para uma menina que jaz toda nua no passeio, a cabeça esmagada e coberta de sangue? O que é que uma pessoa diz para si mesma num caso desses? Tenta perceber: não é assim tão simples declarar de uma forma categórica, inequívoca: «Estou a olhar para uma criança morta». A nossa mente parece negar-se a alinhar as palavras; de algum modo, não conseguimos forçar-nos a fazê-lo. Porque a coisa que temos à nossa frente não é algo que possamos separar facilmente de nós mesmos. (...)

Seria bom, suponho, ganharmos uma dureza tal que nos permitisse não sermos afectados por nada. Mas, nesse caso, ficaríamos sós, tão completamente separados de todos os outros que a vida se tornaria impossível. Há quem consiga fazer isso aqui, há quem encontre em si mesmo a força necessária para se transformar num monstro, mas garanto-te que são casos raros, raríssimos -- o que, sem dúvida, te surpreenderá. Ou, por outras palavras, todos nós nos transformámos em monstros, mas não há quase ninguém que não guarde em si mesmo um qualquer vestígio da vida que outrora se vivia.
Esse é talvez o maior de todos os problemas. A vida como nós a conhecemos acabou, e, no entanto, ninguém é capaz de entender o que é que a substituiu.»


/No país das últimas coisas, Paul Auster/

4 comentários:

  1. Em tempos li muita coisa de Paul Auster, mas a qualidade literária que tanto apreciei na "Trilogia de Nova York" "Leviathan" e outros, foi-se perdendo. Em "Inventar a Solidão", o último que dele li dele, já o fascínio estava no fim. Nunca mais li nada desse escritor.
    Este excerto que nos apresenta é caso para pensar se o devo recomeçar a ler. Não será tão é cedo, tenho outros em espera.

    Bom Natal! :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Nunca fui um leitor ávido dele.
      Mas este excerto pareceu me uma representação tão fiel da realidade alternativa em que eu muitas vezes me sítuo, que resolvi partilhar
      😊
      Obrigado pela presença

      Eliminar
  2. Nunca me preocupo com o autor, mas com o que foi escrito. Se me tocar de alguma forma ou se a escrita for de excelência, aplaudo.
    Muitas vezes já pensei sobre o assunto desse texto e de como seria bom não sentir. Se isso ocorresse no entanto, não seria uma pessoa normal. Essa é uma característica dos psicopatas. Há, no entanto, quem consegue se distanciar e sofrer menos diante de tragédias. No real, não no imaginário. Abraço.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Este foi de novo ter ao spam
      Mas recuperei o
      😊
      Concordo com o que escreveu.

      Eliminar

Acha disto que....