2018/11/20

Um dia gostava de saber escrever assim

Fingir que está tudo bem 

fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga

José Luís Peixoto, in ‘A Criança em Ruínas’

2 comentários:

  1. Extraordinário seu blog,textos inteiramente reflectivos e abrangentes.Belos versos e
    também as músicas que acompanham.

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  2. Muito obrigado, Orthoral Plus.
    Volte sempre
    :-)

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