Disseram-lhe que ela iria desaparecer. Sem escrever qualquer carta. Nem sequer esvaziar as gavetas de casa, as tais, muitas que nem fechavam porque as combinações de seda emperravam as dobradiças, e sofriam com aquele um ou outro frasco de perfume caído da caixa de casquinha que estava em cima da cómoda. Só ia sair, para provavelmente nunca mais voltar. Há uns tempos, as velhotas do mercado ouviram-na a choramingar sozinha, quando entrava de cesto de verga na mão para as compras do sábado de manhã. Não é que a conhecessem muito. Mas mulher cansada de viver, gosta de dar com o olho em cabelos sedosos como ela tinha. E a pele branca, como se fosse o último copo de leite que Jesus bebeu no domingo de Ramos. Perguntaram-lhe o que tinha e ela, a princípio, nada disse. Apoiou-se na mármore da banca do peixe. Os dedos muito avermelhados por entre as cabeças dos pargos. Parecia que ia desmaiar. Até houve quem se oferecesse para chamar uma ambulância. Mas ela aguentou-se em pé, apesar das pernas tremerem por entre a saia de folhos, que dava aquele dia de verão um ar de primavera mal redigida pelas mãos de um poeta. Foi aí que alguém a ouviu dizer que se ia embora de casa. Porque sim.
E foi. Naquele dia, quando o céu já marcava os restolhos de fogo próprios de um dia de estio, ele chegou a casa desanimado. Pressentindo o pior. Ela não estava. A casa estava arrumada como habitualmente. O quarto de porta fechada. A mesa da cozinha alinhava com as cadeiras de madeira clara. Na sala uma escuridão baça parecia conversar com os raios de sol que entravam pelas frestas dos estores da janela. Ela não estava em lado nenhum. Soube que a vida teria necessariamente de mudar. O que era a cola que lhe juntava a madeira da vida desaparecera.
As semanas foram passando, e ele fechava-se como um caranguejo que repousa na rebentação, apenas com a carapaça como proteção.
O Natal já lá vinha no calendário, e alguém lhe disse que ela tinha sido vista. Passeava no jardim da cidade vizinha. Cabisbaixa. Tinha cortado o cabelo, aquele que tinha sido o seu tesouro de seda, como gostava de lhe chamar. Carregava na mão uma pequena mala preta, e andava em ziguezagues, sem destino.
Na véspera de Natal ele chegou do trabalho para uma casa vazia. Sentou-se no sofá da sala, ouvindo a chuva e o vento que lá fora arranhavam as paredes do prédio, recusando-se a ceder ao silêncio da noite. Pensou que não se recordava de qualquer prenda que desejasse mais do que ela, a bater-lhe à porta, com o mesmo sorriso que anos antes lhe tinha servido de chave a um coração fechado.
Adormeceu, e só acordou na manhã seguinte com a luz do sol a acariciar-lhe o rosto, quase como se quisesse secar-lhe as lágrimas que cosiam uma segunda pele em redor de uma triste redoma.
Saiu para a rua, pronto para qualquer coisa que a vida lhe trouxesse. Era manhã de Natal, e andou minutos a fio sem encontrar ninguém. Chegou junto a um parque que sempre tinha adorado. Foi ali que a tinha conhecido, há mais tempo do que aquele que agora conseguia conceber.
E foi então que, fitando o horizonte, viu algo a aproximar-se. A princípio era um ponto indefinível, ate que....
Parecia que a brisa lhe tocava a música sem nome que, não era só dele.
Primeiro os cabelos, agora curtos, depois a pele reluzente naquele sol de fim de ano, e depois um sorriso renascido. Sim, era ela. Olharam-se sem que a palavra fosse uma prioridade naquele momento. Ela pegou-lhe na mão direita, e colocou-a no coração. Sorriram um para o outro. Regressaram de mão dada a casa. Ele percebeu que tinha de ser ela a explicar. Mantiveram-se em silêncio, a olhar um para o outro, até que a ela lhe saiu dos lábios:
‘Percebi que quando morrer te vou perder para sempre. Não consegui suportar isso’
Ele pegou-lhe na mão, quase como se pedisse desculpa por ser um indutor de sofrimento, e continuou num silêncio cúmplice.
Lembrou para si mesmo que era Natal, e tinha uma prenda que nunca havia perdido...
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