Ainda me recordo da primeira vez que me ensinaram a ser revolucionário. Tinha ao redor da idade de deixar os cueiros, e estava num café com uma data de velhotes a ouvir relatos de futebol.
Parecia que toda a gente estava presa ao chão com raízes de eucalipto, e fazia como um eucalipto:
secava o tempo, o espaço, e as emoções.
Era hábito ir aquele sítio, a mando de meus pais. Toda a gente ali já me conhecia como o puto que levava uma mão cheia de tostões para receber em troca várias garrafas cheias de tinto. Entrava mudo e saía calado, coçando o nariz com ranho colado de dias, e que eu só limpava quando a minha mãe me obrigava a tal.
Nesse dia dos relatos de futebol estava frio. Tive de vestir um capote pequeno que eu detestava, e que mais uma vez só usava porque a minha mãe me obrigava.
Mal entrei no café um velhote chamou-me. Normalmente eu não iria. Desde que me lembrava que ouvia dizer para não responder a chamadas de estranhos, porque nunca se sabe onde pode estar a maldade humana. Só que naquele dia fui. O homem vestia um casaco castanho ao xadrez verde, devia ser ou ter sido pescador porque aquilo era roupa de homem do mar. Tinha a barba mal feita, com tufos de palha de aço grisalha espalhados pela cara, a maioria debaixo do queixo. E segurava uma bengala enrolada em fita gomada branca,de cima a baixo.
-Não sabes que já tens idade para ter vontade própria?
Lançou-me esta pergunta, e eu senti-me como um cão que anda a saltitar nos parques públicos, atrás das bolas que os miúdos chutam de um lado para o outro.
A princípio não quis responder, e dei-lhe as costas para ir em direção ao balcão, e fazer o que fazia sempre ali.
-fiz-te uma pergunta, ou fazes como os macacos e coças a cabeça antes de te ires embora?
Lembro-me de ter sentido qualquer coisa de repúdio, que eu ainda não sabia o que era com aquela idade, por aquilo tudo.
Instintivamente apertei o capote, e respondi-lhe, se calhar sem querer:
-sim eu sei o que quero.
O homem retorquiu em segundos, parecendo ainda menos desconvencido:
-Não acredito. Estou aqui quase todos os dias porque não tenho mais sítio nenhum onde ir, e vejo-te aqui, sempre a fazeres a mesma coisa, de certeza a mando das mesmas pessoas. Sabes que podes dizer não, não podes?
Lembro-me que toda a gente gritou golo naquele momento. Senti-me estranho por não conseguir pensar com tanto barulho. Limitei-me,por isso, a acenar com a cabeça. O velhote, que teria para aí uns largos setentas na altura, sorriu e estendeu a mão para a cadeira ao lado. Pegou num saco de pano, e tirou um livro do interior. Tinha a capa cinzenta, já muito sem tom, e ratada nas pontas. Mostrou-me a capa fugazmente, e só consegui ler O capital.
-Se te der isto tens de me prometer que não dizes que fui eu que to passei, ok?
Voltei a não conseguir responder. Só instintivamente peguei no livro, virei costas, e fui fazer o que tinha a fazer. Sem perceber porquê na altura, virei a capa contra mim para que ninguém visse.
Quando saía daquele sítio, reparei que o velhote que tinha acabado de falar comigo estava rodeado por três homens vestidos de preto, com chapéus, que saíram com ele para a rua, e o puseram num carro, com o homem cabisbaixo, e trôpego no andar.
Na rua todos festejavam. Ouvi dizer que Portugal tinha acabado de derrotar a Inglaterra, na casa deles. Era 1966. Verão...
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