Andava sempre com sono. Achava que as pessoas lhe olhavam para os olhos, quase como se fossem o remendo do fundilho de um par de calças: cosido com linha grossa, de um branco sujo, suficiente para criar uma porta destinada a esconder um mundo, de outro. Até nem a roupa que vestia lhe tirava a vontade de semicerrar as pálpebras, enquanto sentia o cérebro a desligar-se, parte por parte, lâmpada a lâmpada, até ser em escuridão que se davam as ordens nas sinapses cerebrais, suficientes para manter o resto do corpo agarrado à vida.
Um dia experimentou sair à rua vestido só com uma gabardine cinzenta, para a chuva. Chegava-lhe às canelas, e tinha umas golas em bico, que levantava para ter o anonimato possível. Andou por duas ou três ruas circundantes, sentindo o vento dos acordares da manhã no rosto, acariciando-lhe o cabelo fino de uma forma quase impositiva. Sexual mesmo. Por momentos sentiu-se amaldiçoado. Não gostava de ter sono. De deixar escapar a vida por entre os dedos, só porque sentia um entorpecimento quase assassino, capaz de fazer resumir os dias a passagens benfazejas de um livro para crianças, de final previsível.
Regressou a casa a tempo de ver o pôr do sol. Sentou-se numa cadeira antiga, de mogno, com encosto de cabeça. Preparou um chá, o que só por si parecia contraditório, já que a última coisa que queria era intensificar a calmaria habitual que sempre o rodeava. Mas, estranhamente, sentiu que ver um final de dia lhe mudou as perspetivas de vida . Achou-se induzido em erro por opções mal feitas, durante anos a fio, e que talvez o estivessem a afastar do âmago do passar dos dias.
Resolveu passar a deitar-se só o tempo suficiente para ter vontade de se erguer de novo. Recomeçou a escrever, e já espera pelo dia em que vá conseguir editar um livro de razoabilidade aceitável. Falta é ter uma ideia...
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