2018/07/24

O Inatingível 2018 novamente em crossover. Mais uma colaboração com o blogue 'Acrescenta um ponto ao conto'


O sol brilhava por entre as nuvens, deixando a pele morna. O vento soprava suave, fazendo os abetos dançar uma espécie de valsa, que roçava os altos portões de metal verde. Dois militares com farda verde azeitona, e de espingarda automática ao ombro, tentavam ocultar os bocejos próprios de um amanhecer de Primavera. Andavam, em linhas retas de cerca de 50 metros, sendo observados ocasionalmente por um graduado que, pela disposição, não parecia disposto a permitir-lhes qualquer falha. Era preciso patrulhar, até os pés ganharem bolhas de cansaço.
De repente a calma daquela unidade militar foi desfeita pelo surgimento inexplicável de um homem no meio da praça de armas. Bastaram apenas alguns segundos para que ficasse rodeado de militares assustados, mas ao mesmo tempo compenetrados nos seus deveres castrenses de defesa, todos empunhando armas automáticas, e em posição de fazer fogo pelo tempo que fosse preciso.
Um jovem alourado, de tez clara e sardenta saiu a correr de um casarão militar alto. Desceu as escadas duas a duas, e correu para ir falar com o graduado que, ainda minutos antes, se limitava a observar dois patrulheiros a fazerem a rotina de todos os dias. Percebia-se que tinha ascendente sobre o mesmo, já que falava quase aos gritos, e o outro limitava-se a baixar os olhos.
Quando percebeu que dali não obtinha quaisquer respostas, dirigiu-se até ao centro da praça de armas. Um dos militares desfez a posição de tiro em que se encontrava, e saudou-o com uma continência.
-O que se passa aqui?,
questionou o militar mais graduado, enquanto se aproximava do estranho, que fumegava por todos os lados, e estava deitado de barriga para cima, a olhar o céu, e sem se mexer.
- Não sabemos meu capitão,
respondeu o sargento, que visivelmente se esforçava por encontrar as palavras certas, enquanto ao mesmo tempo lançava um olhar hierarquicamente forte sobre os outros militares que não se atreviam a desfazer a posição de tiro que tinham assumido, todos por instinto.
-Seja quem for, esta pessoa não pode continuar aqui. É um estranho, e tratem de o tirar daqui.
Mal acabou de dizer a última palavra, reentrou a correr no casarão de onde tinha saído. Entrou no gabinete, sentou-se, pegou no telefone, e secamente pediu ao telefonista:
- Se faz favor faça-me uma chamada para Lisboa. 
O jovem oficial transpirava, à medida que sentia os primeiros raios de sol a entrarem pelas vidraças grossas do seu gabinete. Quando o telefone tocou, foi rápido a levantá-lo:
- Passe-me ao tenente-coronel Otelo Saraiva de Carvalho.
Segundos depois, de Lisboa, uma voz grave falava:
- Pensei que tinha dito que só queria ouvir algo da Escola Prática de Santarém quando vocês estivessem a sair daí. Com quem estou a falar?
No pequeno gabinete em Santarém, percebia-se a gravidade da situação.
-Capitão Salgueiro Maia, meu tenente-coronel. Peço desculpa estar a incomodá-lo, ainda por cima quando o plano já está em marcha. Mas é que surgiu um imprevisto.
Em poucos momentos, explicou o melhor que soube. Estava um homem de aspeto andrajoso no meio da praça de armas da Escola Prática. E faltavam poucos minutos para a hora combinada de saída da coluna militar para Lisboa. Ninguém sabia como ele lá tinha entrado, nem se seria um invasor. Um espião da polícia política.
-Meu jovem, o senhor não está a perceber o que se está a passar, pois não? Olhe para o calendário que está à sua frente, e diga-me que data vê.
O capitão respondeu, firmemente, mas com a hesitação a crescer.
- 25 de abril de 1974, meu tenente-coronel.
Seguiu-se um silêncio que feria os ouvidos. Foi curto, mas impositivo.
-Então vire-se rapidamente, e resolva isso. Daqui por meia hora no máximo, quero a coluna militar na rua!!! É hoje, ou vamos todos para a prisão, ouviu? Os portugueses não podem esperar mais.
Aos gritos, de Lisboa, a ordem estava dada:
-Sim, meu tenente-coronel.
O jovem Salgueiro  Maia voltou a correr para a praça de armas. O sol desabrochava como um pêssego maduro no horizonte, incendiando os resquícios da noite com um vermelho fogo, que parecia deixar no ar o perfume intenso de que aquele dia iria remodelar a história, conforme todos a conheciam.
-Vamos lá a resolver isto rapidamente.
O capitão berrou uma ordem.Mandou formar um círculo em redor do homem. Os cerca de 20 militares de Cavalaria puseram-se novamente em posição de tiro com as armas automáticas.
Um barulho estranho, quase que saído da barriga de uma baleia morta nos tempos idos do Mar do Norte, ecoou por toda a unidade militar. O barulho parecia vir das profundezas da terra.Debaixo do homem que permanecia inconsciente. Vestia uma touca de linho. Trazia umas calças, aparentemente do mesmo material, rasgadas nos joelhos, e estava descalço. Tinha uma cara cansada, mas um ar tranquilo.
O capitão Salgueiro Maia, como oficial mais graduado, chegou-se à frente. Tirou a espingarda automática das mãos de um dos sargentos, e apontou-a ao estranho homem. Pediu-lhe a identificação, e perguntou-lhe se era um invasor estrangeiro. Advertiu-o para não tentar fazer qualquer movimento brusco, pois seria logo preso ou, se necessário fosse, abatido.
O inesperado invasor disse chamar-se Júlio. Sim, o personagem principal desta história, que já tinha passado pelo Portugal do dealbar da nacionalidade, e pela Lisboa trágica de 1755. Explicou tudo isso, com uma voz trémula, de quem não esperava que acreditassem nele. E não acreditaram. Foi o próprio capitão Salgueiro Maia que ordenou que o mesmo fosse preso. Com uma escolta de dois militares, de espingardas em punho, foi encaminhado para as celas do quartel militar. Estava uma revolução em curso, e nada nem ninguém poderia perturbar aquele momento de viragem da história de Portugal.
Foi por entre as grades do pequeno cubículo onde o deixaram, que Júlio assistiu à saída de uma extensa coluna militar. No caminho pelos corredores da instalação militar, percebeu que, acidentalmente, estava a ser um intérprete do momento mais bonito da história de Portugal. Reconheceu Salgueiro Maia. Sorriu, sozinho, com a hesitação do jovem capitão que não sabia se as ordens a que estava sujeito iriam ser cumpridas com sucesso. E, pela primeira vez desde que se tinha metido nesta aventura, não se sentiu assustado. Sabia que tudo iria ter um fim. Um dia. Não sabia quando, nem de que forma. Nem até se sairia vivo de todas estas atribulações. Sentia-se desmaterializado da pessoa que já tinha sido. Agora, a única coisa que lhe interessava era passar à próxima etapa. Saber onde a sorte o levaria. Pensou que a máquina do tempo estaria em condições. Bastaria só ativar o botão que trazia consigo a todo o momento, e ela recomeçaria a trabalhar.
O tempo foi passando, e de Lisboa vinham as notícias que Júlio já sabia que iam acontecer. O capitão que ainda agora o tinha mandado prender, tinha, ele próprio, dado voz de detenção ao presidente do Conselho de Ministros. Nas ruas, o povo festejava o fim da ditadura. Ao anoitecer, três militares vieram dar-lhe o jantar. De propósito entornou a taça de sopa no chão, levando a um pequeno momento de distração dos que o mantinham cativo. A porta da cela ficou aberta, e Júlio aproveitou para fugir.
Já era noite, e o quartel estava iluminado por pequenos pontos amarelos, e que pareciam pirilampos. Escondeu-se atrás de um blindado, apenas os minutos suficientes para ouvir dois militares a dizerem um para o outro que o preso tinha escapado, e era preciso dar o alarme.
Assim que teve oportunidade, preparou todos os sentidos para perceber que era altura de nova transição no espaço, e no tempo. Um silvo agudo fê-lo acionar o botão, que o fez transpor para a máquina do tempo. O inesperado de toda esta aventura continuava, ao virar da próxima esquina.

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