Esta era uma conversa póstuma. Ele tinha partido cedo de mais. Ninguém sabia porquê, que achaque lhe tinha dado. Mas ficou-se. Numa noite de tempestade, em que os princípios chegavam sempre depois dos fins. As mulheres ficavam em casa a cuidar dos filhos, e a fazer com que o barulho do choro se acabrunhasse o mais possível. Os velhos sentavam-se sozinhos, na cadeira de balouço, à luz do candeeiro de petróleo, enquanto esperavam fundir-se com a própria sombra. Só na manhã seguinte se soube do desaparecimento. E decidiu-se que era importante ter uma conversa, antes de o homem descer à terra. Falava-se que tinha deixado uma casa composta, parca em riquezas mas asseada. Era o que se queria naquela terra, temente ao sagrado, e que preferia manter o profano no fundo do vale, onde o pôr do sol nem sequer chegasse. Ele pensava bem de tudo isto. Amanhava-se todas as manhãs, acreditando que era abençoado por viver numa terra longe de tudo, e onde nem todos conseguiam chegar. Espreguiçava-se quando queria, adormecia sempre que o cansaço lhe levava a melhor. Era bom ser assim, e quem achasse diferente, estava no seu direito. Claro. Mas ele não gostava que lhe perturbassem o bem estar. A rotina bem posta que se esforçava por manter. O alfaiate, o melhor amigo que tinha conseguido fazer numa vida tão curta, olhava cabisbaixo para as palmas das mãos. Não se atrevia a falar, e ouvia apenas a respiração do grupo que se tinha juntado para lamentar a partida precoce de um amigo. Tudo era, de facto, póstumo, quando já não se sentia o abraço e os sorrisos barulhentos Q.B., de alguém de quem sempre se gostou.
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