2019/03/04

Sopa e tourada

às oito e meia da noite do primeiro dia do resto da minha vida, passava na televisão uma tourada a preto e branco.  lembro-me que as notícias tinham acabado de dar,  com mais uns aumentos de luz,  água e gás,  e a morte de um cardeal qualquer não sei onde,  e depois eu estava à espera da minha sopa quando alguém gritou que ia começar a tourada.
estava no mesmo sitio de sempre,  aquele café ao fundo da minha rua,  alumiado por uma espécie de de gambiarra,  com um balcão de madeira carunchosa,  e três mesas com os tampos cobertos por toalhas plásticas,  com flores,  acho que malmequeres. digo acho porque a única coisa que conseguia distinguir ali dentro sempre que passava a porta, era a minha fome. o resto nem me preocupava em perceber pois ficava inevitavelmente deprimido.  mas naquele dia,  não sei porquê,  a minha atenção virou-se para uma tourada. eu que tinha uma indiferença difícil de explicar por animais,  naquele dia comecei a pensar num sofrimento telenovelesco,  com maus a esforçaarem-se por acabar com o tempo das outras criaturas,  e depois o sangue a pintar um chão de gravilha,  numa arena toscamente redonda,  quase como se para depois ficasse a crucificação de várias pessoas para sobremesa.
quando a sopa chegou,  reparei que o pulso direito do homem que sempre me servia continuava a tremer,  como habitualmente.  por essa altura já o boi tinha entrado na arena.




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