2018/01/06

Interior mente

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Às oito e um tostão do dia esquecido, perto do trocar do século, o homem que respondia por luís saiu de casa com o cachorro, ou as sobras dele, debaixo do braço. O bicho perdera o pio havia uns dois dias, e ficou tombado debaixo do lava-loiças da casa a esvair-se da vida . Passaram as horas com a monda do milho, a chuva certinha e cor de água barrenta que o céu de zinco deslizava cá para baixo, e só numa manhã como as outras, ali quando se atamancava um pedaço de pão seco com torresmos para comer antes do sol despir o pijama e se pregar no horizonte, é que o bicho deu nas vistas. Faltava-lhe metade de uma pata, e já só tinha as costelas à mostra. Deu ideia que tinha pisado uma daquelas armadilhas de pisar lebres que os caçadores da parte de cima da monte deixavam, cá em baixo, esperando que os bichos picassem o bocadinho de pão duro que lá estava, e depois ficassem a espernear até se esvaírem em sangue. O cachorro tinha ido para aquela casa mal tinha aberto os olhos. Gostava de dormir em cima do tapete de serapilheira , no alpendre da cozinha. Conheceu uma, duas, três donas daquelas que saíram sem deixar saudades da casa, até se transformar na única companhia daquele homem sem sentimentos, rude, e que costumava dizer dele mesmo que tinha um peito de pedregulho alentejano . O bichito deu o último suspiro, e nem uma lágrima rolou na cara áspera, bexigosa , e sempre de arame feita do senhor luís . Descobriu o cadáver escabroso do animal, e o primeiro pensamento que lhe veio, quase como uma bebedeira mal curada quando o sol nasce no dia a seguir, é que tambem já não faltava muito para o bicho bater a bota . Sentiu uma gosmazita na garganta, mas o mata bicho do meio da manhã, que guardava numa garrafa de água ras velha ao pé do lavatório, deixou lhe a goela normal. Ali depois do pino do sol, com o animal já embrulhado num resto de saco de batata nova, que lhe deixou só o coto da pata de fora, saiu de casa para ir deixa lo a qualquer lado. Cacimbava um bocado, próprio dos fins de janeiro nos sopés dos montes alentejanos ali para os lados de Borba, e em pouco tempo ficou com as botas cardadas cheias de uma lama castanha desmaiada . Quando chegou á estrada velha, viu lá ao fundo, a passo de caracol fumegante, o trator do vizinho de que não se lembrava o nome por não gostar dele, e começou a andar com o saco de batatas escondido debaixo do sovaco. O cheiro já era tipo carne esquecida há uma semana, e a roupa estava empapada numa mistura de cacimba e nhanha sem cor que o cão estava a deitar. Quando passou pelo conhecido baixou os olhos, e preferiu o silêncio a ter de se desfazer em explicações estupidas sobre o motivo de levar uma coisa a escorrer não sei o quê pela roupa abaixo. O outro fez lhe a vontade, e só se preocupava em não deixar que o velho trator que cuspia fumo como um dragão rouco tombasse nos solavancos daquele alcatrão esburacado e esquecido . A chuva já tinha parado, e o homem a que chamavam luís começou a sentir qualquer coisa estranha a tomar-lhe o corpo. Começou nas pernas, quando passou as ancas fez com que o passo se tornasse mais lento, e quando já lhe tornava o peito todo espicaçado , parou. Chovia a bom chover outra vez, e não dava mais para continuar com uma geleia verde que já lhe pintava o casaco, as calças , e até as botas que por esta hora já lhe travavam o passo a ponto de se afundar na lama . E foi então que achou que a cara já não estava molhada só da chuva, mas também de qualquer coisa que nem sabia o que era. Pensou que não devia estar ali. Pensou que estar sozinho no mundo é o mesmo que sentir o peso da terra a esmagar as costelas, fechado entre quatro tábuas. Chovia ainda com mais intensidade . O homem conhecido como luis tinha de fazer qualquer coisa. Pousou a serapilheira enlameada no meio da terra carregada de água, e terá chorado pela primeira vez na vida. Nunca se lembrava de se ter sentido tão desesperadamente mal. Tão capaz de ajoelhar em veneração à terra, esperando que alguma coisa mudasse o peso de chumbo no coração . Estar só é o final dos tempos , escrito com um planeta bombardeado de todos os meteoritos do mundo. Tudo acabou sem que a chuva parasse. Esgravatou a lama durante minutos a fio, e cavou um túnel sem ponta . O bichito teve um sítio para dormir para a eternidade , e ele: Aninhou-se ao lado daquele féretro, e morreu de tristeza ...



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