2024/10/31

...senhores dos andares de cima

 Diz-me,

Se fossemos daqui o que mudaria?,

Conheceriamos a distância,.. 


Saberiamos que o dia não nasce sempre com a mesma roupa,

Nem da noite manteremos a ilusão quando nos aprouver,...


Seríamos os senhores dos andares de cima,

Os que miravam tudo sem se aproximar,

E usariam mesmo vestes desproporcionadas,

Despreocupadas,....


Com a consequência da vida, 

sem sentido, 

agarrada aos calcanhares,...


Nada do que se nos aprouvesse seria lei,

Até porque se calhar,

Sendo daqui não iriamos existir,...


A probabilidade da desilusão seria muito maior,

E tirar-nos-ia tudo sem piedade 

                                                                               Tirado daqui

Primeiramente por incompreensão


                                                                            Tirado daqui

Antigamente,
As mulheres representavam o pavor,
A frota inocente de sentimentos bélicos,
De que as pessoas se afastavam,
Primeiramente por incompreensão,
E depois por respeito,....

De nada adiantava haver lirios a pender dos cabelos secos,
E quebradiços das criaturas sem idade que se nos deparavam,....

Hoje é diferente,
As mulheres são criaturas assexuadas,
De tez limpa e olhos vitreos,
Quase enublados,
Mas representam a novidade,...

E há um grupo selecionado de pessoas,
Onde me incluo,
Que toma notas esforçadas de um processo real,
E púbere de transformação 

2024/10/30

...vagalumes

 Só o teu rosto continua a sorrir como dantes,

A vitória,

O desleixo dos últimos dias de maldade,

Estar a chover no canto escurecido do mundo,

Tudo aponta no sentido do vazio,....


Acendem-se cigarros consecutivos,

Que brilham como vagalumes esquecidos e velhos,...


E mesmo assim,

Mesmo assim és a alegria,.. 


A verdade apodrecida não passa por ti,

Só mesmo a ilusão do acariciar verdadeiro

                                                                                Tirado daqui

Filme: L'Inferno (1911)

2024/10/29

Letras de vácuo

 A solução,

Resolução,

Finalidade em perseguir,....


Letras de vácuo,

Números de circo,

A filosofia do pai nosso,

Com a desventura de qualquer avé maria,...


Juntos ficamos,

Pobres seremos,

E há valores como a solução,

O problema deixado intocado,...


Vale-nos a miséria,

Um pombo assustado,

Que inocente não quer,

Abandonar o que já fomos 

                                                                                Tirado daqui
THE PURSUIT OF LOVE
2021 / de:Emily Mortimer

2024/10/28

Escrito a 25 de Abril de 2024


                                                                               Tirado daqui

Gostaria da vontade,
Um casaco de retalhos,
Simples,
De homem pobre,
E o desejo de mais qualquer coisa no prato,...

Um passeio no parque,
Olhos amendoados,
Dizer que conheço muito do mundo,
E estive onde o sol se põe e nasce a todas as horas do dia,....

Enliar-me em cordel de livros,
E a mentira como companheira de dança,...

E no fim,
Quando a dança estiver a parar e já não me sobrar pele,
Dizer sou estrangeiro ainda menos do que autóctone nos meus sonhos

2024/10/27

Mais qualquer coisa para a luz

 Estar aqui com a inocência de se perder um homem. Deixar de ser o que ele representa,...


Os olhos fixos em cenas assustadoras,

Uma hesitação,

Um choro de perda,

Um corpo envolto em chuva aleatória,....


Nada significa com o tempo parado como está,

Sem razões de alarme,

Com a indolência própria de não ter o que dizer,

Nem onde estar,...


Só vejo o que esta ilusão me permite,

E é assim,

Mais qualquer coisa para a luz 

                                                                               Tirado daqui

2024/10/26

...fortuita expectativa da loucura

 Dor,

Nao sei se sou daqui, nem como gira a minha cabeça. Não vejo um fim para isto. A minha idade é de medo, o meu corpo reflete os desejos que já tive de cada vez que olhei para o mundo.

Há uma mulher em cada sombra deste quarto. E em cada lágrima que me acompanha na cara, um tormento por realizar.

Nunca fui o melhor de mim, nem a fortuita expectativa da loucura. Toda a gente consegue o que quer. Ou pensa que consegue. Eu queria uma casa no entardecer. Só com uma cama. Nada mais seria necessário. 

Que me tirassem daqui, me lavassem o corpo e a alma. Me chamassem amigo, como se um amigo se vendesse numa loja de flores para apaziguar o reflexo escurecido dos passos da derrota. E conseguindo eu ser amigo,

Fosse o amigo certo. Nem excessivo, nem atrapalhado. Nem mal escrito e intragável a um esteta. Um amigo.

Passarei silencioso pelos que eventualmente me apreciarem. Assim o tempo o venha a querer.

                                                                                  Tirado daqui

2024/10/25

...de sitio em sitio

 Tinha acabado de fazer 40 anos. O tempo urgia. Não pertencia aquele sitio. As suas prioridades estavam noutro local, do qual pouco ou nada se lembrava. Abriu uma caixa de cartão pequena, que guardava na mala que arrastava de sitio em sitio. Era lá que ostentava o amor, sob a forma de resmas estranguladas de papel. Rabiscado, etereamente perfumado. Tinha lá escrito o que tinha sido, mais do que aquilo que era, ou que queria ser. As vozes que ouvira. A volatilidade do seu ser. As bocas que beijara. O sexo desnecessário do qual só se lembrava graças a uma sucessão de linhas sem sentido, e que casavam distintamente com o branco do papel. Experimentou andar perdido naquele sítio. Corria, de canto em canto, de espaço em espaço, pelo meio de todos os olhares, femininos ou não, que o devoravam como uma presa perdida numa savana de qualquer ponto do planeta. Ele era isso. Um pedaço de carne sem destino, e principalmente sem vontade...

                                                                                 Tirado daqui

2024/10/24

...barco casca de noz

                                                                       Tirado daqui

Exigir o belo como onírico,
Um finissimo retalho de papel transparente,
Dos que se usam para deitar a beleza ao nosso lado,
Com o intuito de lhe fazer juras de qualquer coisa no resto da noite,....

É errado pedir o que seja da beleza,
Observá-la quanto muito,
Enquanto por exemplo descende no horizonte,
Em cima do barco casca de noz do pescador que não liga à solidão,
E aspira sozinho à união com o eterno,...

Traz por isso um saco sem cor,
O rosto de um boneco que nasceu no principio dos tempos,
E o teu livro de desculpas,...

Vamos viajar,
Até qualquer sítio onde a porção do eterno seja visível 
 

2024/10/23

....o desejo renascido

Por isso marca a tua passagem,
o som atenua,
a palavra ressurge como conceito,
virtude,
algo efémero que se desfaz na concomitância
do tempo,….

os passos aviltam o passado,
o desejo renascido,
reconfigurado,
e o que se imprime é a voz,
o que fica dito,
e passa a quem faz da recordação,
o ar

                           Tirado daqui

De: Marc Riboud

2024/10/22

...a companhia do falhanço

 Escasseava a vontade,

Os trejeitos de chuva necessários,

Até a porção de loucura,...


Tudo faltava para que a escrita brotasse,

E só a companhia do falhanço,

Da eminência de emudecer,...


Sem que mais nada saísse do casulo da criação,

Para a acidez do ar tóxico destes dias plumbeos,

Mantinha-se o alerta,...


Tudo o mais não produzia quaisquer necessidades,

Fundamentais para a luz,

E à continuação da fantasia especial

                            Tirado daqui

2024/10/21

...a pena solta

 Guardei as palavras que achei corretas,

Não me apego aos conceitos,

Às ideias soltas,...


O que escrevo,

O que redijo a pena solta onde tiver que ser,

Respira antes de andar,... 


Vive da fruição,

Dos dias que amanhecem com o amor de dois passarinhos que não dormem,.. 


E o que guardei,

Está longe do vilipendio e da gula dos outros,...


São palavras de martírio e perseguição,

Mas fortes,

Encorpadas,...


E únicas 

                              Tirado daqui

2024/10/20

...o amor tatuado

 Nesta rede de fitas velhas,

E arredondadas,

Uma valsa,

Duas danças finitas e apresentáveis,...


A vontade,

O professor que se despede no último sorriso para pupilos,

A mãe que quer o amor tatuado na pele do filho,...


O sentido que no fundo falta,

Quando se escreve para o tempo,

Finito e que transpoem a medida de solidão,

Como o faço neste momento 

                              Tirado daqui

2024/10/19

...proximidade do mar


                                                                         Tirado daqui


Não era isso que estava escrito,
Recordo-me de poder ter sido sânscrito,
E questionava-se,
Acima de tudo a forma do mundo,
A sequência das coisas,...

Se a sorte viria efeminada,
Com voz e maneirismos de mulher resoluta,..

Era nesse instante,
Em que discutimos questionamentos,
A palavra da teologia sobre a prova dada da razão,
Que esta discussão surgiu,
E é como te digo,
Está escrito,...

Recupera a ordem das coisas,
E a proximidade do mar sobrevalorizará todos os equivocos,
Que sentimos ainda boiarem entre nós 

2024/10/18

...as escolhas que tinham de ser feitas


                                                                                  Tirado daqui

À minha espera estavam as mesmas pessoas de sempre. A dona Sofia, a velhota simpática do primeiro andar, que tinha sempre flores para acompanharem o meu sorriso. O vitorino, o apaixonado da dona Sofia. Sim, vitorino com vê pequeno porque ele próprio o pedia. Oitenta e sete anos de uma vida incompleta, já que era o primeiro a dizer aos outros que ainda lhe faltava ser ele mesmo. E às vezes a Lucrécia, naquele dia não pois supostamente estava adoentada. Era a artista do prédio. Tinha vivido em tantos sítios do mundo, a ponto de ser a pessoa mais desapegada que conhecia. Eu estava a chegar do estrangeiro. Estive fora semanas, por enquanto não digo onde, e regressava antes do tempo. A minha avó, último elo de uma família que já fora extensa, mas que nos ultimos anos se estava a consumir como a chama de uma vela, estava internada. Chamaram-me dizendo que ela queria ver-me, e percebi que estava prestes a entrar num recomeço. Vi-me com cinco anos, pela mão da minha avó, com um balão encarnado atado ao pulso, a olhar para um enorme navio colorido a entrar pela barra do Tejo dentro, num dia quente de sol. Era feliz na altura. Ela existia para me completar, e ser o meu amparo em todos os momentos menos bons. Fechei os olhos com mais força ainda, e vi-me a partir umas semanas antes. Ela nem me olhou. Permaneceu sentada no cadeirão castanho e gasto de napa preta, que sempre tinha sido o dela, e onde tantas vezes eu dormi no colo salvador daquela mulher. Agora voltava uma pessoa diferente, provavelmente para me despedir dela. E sentia-me triste. Despido de alma e de sentido. Mas capaz, por obrigação e por amor, de fazer as escolhas que tinham de ser feitas.

2024/10/17

Exatamente o que eu penso e sinto

 Com os anos a morte vai-se tornando familiar.

Quero dizer não a ideia da morte, não o medo da morte: a realidade dela.
As pessoas de quem gostamos e partiram amputam-nos cruelmente de partes vivas nossas, e a sua falta obriga-nos a coxear por dentro.
Parece que sobrevivemos não aos outros mas a nós mesmos, e observamos o nosso passado como uma coisa alheia: os episódios dissolvem-se a pouco e pouco, as memórias esbatem-se, o que fomos não nos diz respeito, o que somos estreita-se.
A amplitude do futuro de outrora resume-se a um presente acanhado.
Se abrirmos a porta da rua o que se encontra é um muro.
No nosso sangue existem mais ausências do que glóbulos.
Tento recordar-me: a casa dos meus avós, a Praia das Maçãs, episódios antigos, as horas gordas do relógio de parede ecoando na sala.
Deve ser tudo normal, certamente é tudo normal e não entendo. Venderam a quinta, o mundo encheu-se de pessoa.
Fomos tão poucos, dantes!
Escondia-me num canteiro a fumar, as nuvens passavam sobre as copas.
As flores nasciam, perfeitas, dos dedos do senhor José. Esqueceste-te das estátuas com o nome das estações, do roseiral?
Do mês de junho em que tudo era verde, nítido, claro?
De trazeres pilhas de livros para o jardim?
Que Antonio eras tu?
Dos versinhos que escrevias?
De ires ser escritor?
Tão fácil ser escritor, não é verdade?
Tão fácil respirar.
António Lobo Antunes

O animal das vezes.. .


                               Tirado daqui

O tempo passa,
Os pronomes de designação ficam a um canto,
Como urros animalescos a que se recorre porque sim,...

As coisas contam-se atabalhoadamente pela quantidade de água,
Que corre aos pés da casa de sempre,...

O animal das vezes emudece de tristeza,
A vitória dos dias de antes,
Passa agora como derrota inviolável,....

Será o passar da vida,
Recordo-me de um dia,
Me terem beliscado a explicá-lo

2024/10/16

e o desenho...

e o desenho,
o contorno cristão do
sorriso,
as virtudes,
os desejos,
a lista interminável
de versos,
que vergastam o corpo,
coíbem o prazer,....

onde está a interminável
doçura dos teus olhos,
mulher de quadros,
de vidro decorada,
esculpida,...

e o desenho,
pergunto pelo que eram
os teus passos de encontro,
o teu caminho azulado
do prazer,
que se perdeu nas bainhas do
tempo,
onde repousam agora
os pós inocentes do amanhecer,
que representam a tua herança 

                                                                                Tirado daqui

2024/10/15

E os gritos de noite...


                                                                 Tirado daqui

De pernas escurecidas,
Braços trocados,
Sentou-se ao longe, 
Num recanto da sala perdida da casa mais aligeirada que havia,....

A sua intenção era recomeçar,
Dizer de si mesmo que já chegava,
Não havia fantasmas se o homem não quisesse,...

E os gritos de noite são casualidade,
Assim como chorar sem motivo,....

Pensar doía, chegava-lhe em remanso,
Mas tinha de ser,...

Lá fora só esperavam por si mesmos,
Cachorros doentes e mulheres mortas sem saberem,...

Ele teria de continuar ali

2024/10/14

Novelos de lã...


                                                                              Tirado daqui

Marinheiro com dois gatos, 
ca. 1910

Porque em nenhum lugar ele tem asas,
Se sabe dele como o responsável,
A pessoa acertada,
Que precisa de poucas palavras para se escrever a si próprio,...

Ele é o portador constante das más noticias,
Dos dias sem sol e que nem chegam a nascer,...

Por ele,
Nunca sequer se tinha escrito,
Não teria havido criação artística,
Novelos de lã por entre gatinhos que aprendem o mundo a brincar,...

Mas há mãos,
É madrugada por entre a luz que aqui descrevo,
Na crença de que ele até se poderá vir a salvar






2024/10/13

...um céu de cores falsas

 No canto de trás desta casa,

A justificação,

O ilusório suspenso de um céu de cores falsas,....


Discute-se a pátria,

Se o grito cabe no tacão alto da morte,...


Dois a dois,

Velhos dispares e sem roupa,

Passam pelas ruas das cores púrpuras,

E desatam as prendas que lhes calham,...


No fim,

Foi a mim que chamaram,

O padre das invejas,

O professor dos meios das palavras,

O médico sem doentes que professassem,...


Todos apontaram dedos esquálidos e ofendidos contra mim,

Enquanto a chuva impedia que a história se fechasse de par em par

                                                                                   Tirado daqui

Casa Malaparte
Capri, Itália

2024/10/12

...desígnio dos ímpios

 Achava-se,

Perguntava-se,

Diziam aos gritos que a água abençoava,

Era um designio dos ímpios admitir a religiosidade daquele lugar,...


As pessoas julgavam-se apenas pelos voos rasantes dos pássaros,

Cada um apoucava-se perante o outro,...


E tantas toalhas,

Motivos de adoração ao que não se via,

Compunham o que parecia um retrato perdido da renascença,

Assinado com uma gota de sangue,...

 e restos de chuva da mediania italiana

                                                                         Tirado daqui

Splish

Foto de Fumi Nagasaka

2024/10/11

Os dias tombam.. .

 O aniversário é meu neste dia,

Não que haja grandes razões para celebrar,...


Os dias tombam ainda e sempre para o mesmo lado,

Durmo em cima da noite e não de esguelha,

Com o rosto a queimar no lume brando da ausência,...


Mas mesmo assim o dia será meu,

Com um pano de vitória,

Alguma música que se possa arranjar,

E permanecer mesmo depois de o hino nacional tocar na televisão,... 


E já prevejo o final de tudo,

Nada vai mudar grande coisa,

Só me contentarei,

Com outro aniversário invisível 

                                   Tirado daqui

Há lodo no cais (Marlon Brando)

2024/10/10

Somos tanto e tão pouco


                          Tirado daqui

Fotograma de 1887

Somos os novos,

A falta de vontade,

Pernas soltas de falta de caminho,...


Somos vinte e quarenta,

Falta de idade e noites em branco,

Somos a pessoa e a maré azul da calmaria,...


Somos tanto e tão pouco,

Que quando o novo sai do velho,

Temos luz em vez de um lugar no escuro,

E tanto tanto quarto para ocupar,...


E agora que a música voltou,

Deixámos de ser a nossa escrita,...


Para que a mulher das madrugadas cinzentas regresse,

E mais qualquer coisa haja,

Para que voltemos ao início 

2024/10/09

O tempo assim empacotado


                         Tirado daqui

Sabe-se pouco do sabor a sal,
Este ar que balouça como a corda da desilusão,...

Queima a pele,
Desiquilibra os sentidos,...

Calor só na forma de sentir a vontade,
De ter vida suficiente para a experiência,...

O tempo assim empacotado,
Decomposto,
Que ao menos sirva para que a luz nos toque como vitória,.. 

E há mais qualquer coisa,
Além do desespero de a ilusão,
Ser mais do que o real vestido de sombras,
Como este que te entrego 

2024/10/08

Nem por isso


                                                                                     Tirado daqui


Nem por isso,
A rádio está baixa,
O café arrefece,
E duvido de filósofos,
Tanto que ponho em causa o sol ensonado,
E o meu braço direito que já não é meu,...

E ter um sexo mirrado,
Nem por isso a fatalidade,
E se te beijei foi lá atrás,
Quando o mundo era a rosa desmaiado,
E o lugar do desejo era sempre nas gavetas,
Mesmo que lá fora ventasse,....

Nem por isso,
A verdade deixou de me desejar,
E saio para a rua porque é no meio do afoguear das multidões,
Que mais sozinho me sinto

2024/10/07

Acusava

eu acusava,
sim a água
corria rua abaixo,
persistia em chover,
e olhava desaustinado
para trás,
sem conseguir agarrar-me
de soslaio ao passado,...

e dizia mal dos catedráticos,
os que de dedo em riste
me cortaram o pensamento,....

e éramos todos nós,
e tantas contas por
fazer,
com os quocientes
indefinidos,....

e aquele livro
ainda aberto,
de autor desconhecido,
capa vergada à
pressão do tempo,....

e persistia em acusar,
sem saber o que fazia

                                                                               Tirado daqui

2024/10/06

Mais um projeto em que o Inatingiveis participa


 Dois textos deste blog constam da colectânea 

'...ninguém é mesmo ninguém'

'A desilusão'

Pragmático e desafiador

Tanto esforço para prender a tristeza,
Fazer muita força e fechar o rosto,...

Ninguém deixa ver a lonjura do medo,
Os olhos lacrados a fogo,
Como se o tempo não significasse mais nada,...

Sentia ter dito que tinhas de ser assim,
Pragmático e desafiador,
Alguém que abraçasse o que tinha de ser valorizado,
Desregulasse a chuva que insiste em cair,...

E pronto,
Aceitasse a dor,
Ela que vem sempre quando as janelas se fecham,
E não há mais chão para pisar 



2024/10/05

Viagem a Lisboa

 Nessa noite não jantámos. A fome era escassa, e optámos por sair do hotel, aquele sitio poucochinho e indecoroso que tinhamos escolhido sem qualquer certeza, e fomos de mão dada, apoiados um no outro e na falta de vontade e de explicação que sentiamos, assistir a um concerto de música de câmara na Sé de Lisboa. As ruas estavam escuras. Aliás, uma espreitadela do miradouro de santa luzia mostrava que a lua estava tímida, recolhida em roupas de nuvens por cima do namorado Tejo. Cruzamo-nos com gente estranhamente parecida connosco. Um casal cabisbaixo, que parecia contar os quarteirões que faltavam até chegar ao alojamento local de circunstância. Ela com um sobretudo maltrapilho, vários números acima do seu, e claramente deslocado para a noite a anunciar verão daquele dealbar de Junho. Escondia o cabelo, que de relance me pareceu alourado, num chapéu com forma de candeeiro de pensão antiga. Ele não tinha muito que desvendar. Procurava um sitio que o abrigasse dela, como os olhos de vagalume o mostravam. Estava decidido a gravar tudo o que se cruzasse connosco, até passarmos as portas amplas da Sé. Mas a noite não nos queria revelar muito. Parámos só para um café, num daqueles espaços de página dois de revista que Lisboa, a nova Lisboa dos escaparates turísticos do mundo, se esforçava agora por mostrar. Fomos servidos por um jovem imberbe, um nómada, não sei se digital, que se esforçava por esconder o seu desconhecimento total da lingua portuguesa, com um telemóvel estrategicamente ocultado no balcão, com um qualquer tradutor ligado sem que os clientes o pudessem perceber. A bica sabia a princípio. Olhei para ela, sorrimos, e nem precisámos de o dizer um ao outro. De regresso à rua, ja estávamos próximos. A imponência da sé vestia-se de bruma noturna, com os sinos a marcarem a hora certa para o inicio do evento. Pareceu-me bem composto de gente. A cidade, além de renascida para o seu novo sustento do turismo, revelava lentamente uma intelectualidade, não sei se de circunstância ou não, que não me agradava. Sou sincero. Não gosto de manifestações espontâneas de falsidade. Mas habituava-me a ela. Cruzámos finalmente as portas sempre frondosas da casa mãe da cidade, e escolhemos um local junto a um capitel de decoração florida. A noite começava bucólica...

                                                                                  Tirado daqui

2024/10/04

a madrugada atapeta a imundície

 doçura,
inocência espalhada
no chão,
a loucura
e uma caneca enegrecida de café,....

duas vozes que
se separam,
quando se juntam,
a lonjura,
batuta insuficiente para o silêncio,....

terminou o dia,
a madrugada atapeta
a imundície,
já não se perde
a volatilidade de um beijo

2024/10/03

Dedo após dedo

 A vontade,

Dedo após dedo,

Como se a verdade,

O que ditava impressões,

Posturas, 

Memórias,

Até despedidas perante inevitabilidades como a morte,

Fosse o que contava,...


E vivia,

A preencher os espaços em branco dos atrevimentos,

A tapar com a luz a passagem do tempo,...


Era ele,

Eu refletido naquele espelho

                                                                                 Tirado daqui

2024/10/02

O rato

 Começou por ser um ponto insignificante. Mas à medida que se aproximava, ganhava contornos. Os olhos esquivos, inquisidores, que brilhavam como vagalumes na noite de extertor que era sempre aquela. Com dificuldade, percebia os contornos do seu corpo ágil; pêlo luzidio e eriçado, cauda empinada, à procura do melhor e pior que a escuridão tinha para oferecer. Aproximava-se do lampião da esquina, cheirava até mais não atento a ameaças, e ao mesmo tempo às ofertas que a noite tinha para lhe oferecer. Era o meu entretém em cada noite. Assumia a minha solidão a olhar para aquele bicho. 

Chamava-o meu, por vezes com todas as forças que tinha. A luz do seu desespero era a minha. A vontade férrea com que o agarrava à minha loucura de me manter acordado, longe do que as sinapses do cérebro me traziam nos sonhos. Vi-o, vez após vez, escapar a predadores que a noite traz. Assustei-me, sem nunca o conseguir assumir como meu. Fazer algo que pudesse mudar a instabilidade da vida daquela criatura. 

Desesperava por noticias dele sempre que não aparecia. Sorria ao tentar dizer a mim mesmo que a sua racionalidade era apenas a suficiente para perceber que eu o observava a cada noite. Estive perto de contar às poucas pessoas da minha vida sobre, no fundo, aquilo que se tratava. A minha relação com um rato. 

Um vivaço e fugaz rato, que, tal como os seus antepassados, e os que num futuro próximo seguissem os seus passos, teria uma existência curta. Mas a daquela criatura, daqueles dois pares de patas, olhos luzidios, e temperamento de ser desesperadamente inteligente, era minha. Só minha...

                                                                        Tirado daqui

Fotografia de Natalia Drepina

2024/10/01

Outubrando a 2 de Junho

Era uma menina, sorria. Não sabia os seus limites, e achava que os sorrisos eram pedaços das nuvens que, desprendidos do céu, atingiam as pessoas que eram felizes à sua maneira. Uma menina de dois rostos: um público, bem desenhado, escorreito, de pele lisa e sem incorreções. O rosto que se lhe colava todas as manhãs, mal saía do seu mundo. O mesmo com que enfrentava a simpatia, e a arrogância. O desejo, e o ódio. O mesmo que lhe fazia manter a postura, dar passos sem destino até onde o acaso quisesse. Um rosto que era uma herança. Dos que lhe dando vida, lhe deram força para reescrever todos os momentos menos bons com que se deparava. E um rosto escondido. Velho, triste, encarquilhado como uma maçã morta pela pressão do ar poluído da existência. E era assim que tinha de seguir. Uma decisão ambivalente entre um rosto cativante, feliz, e a outra face da morte que arrastava, pela escuridão


                                                                        Tirado daqui

Fotografia de Natalia Drepina