2024/09/30

Onde os cheiros de criança


                                                                        Tirado daqui

Do trabalho,
     Braços que se lamentam,
            Este poema que desliza até ser impossível agarrá-lo,....

Não é de mais ninguém como que um reflexo de autor,
           Um conservadorismo irreal,
Mesmo que hajam duas bebidas para parecer fraco,
E uma doença,
      Que nos conserve na banha antiga dos mais velhos,....


Talvez se nos pagassem,
       A alegria voltasse nas memórias olfativas das traseiras das mercearias,
Onde os cheiros de criança,
      Ainda brincam connosco às noites

Fotografia de Natalia Drepina

2024/09/29

...a segurar o sítio

 A razão,

O beijo mal dado,

Um corpo que grita por respeito,.. .


Choro abafado e inaudível,

Na caixa de um duche,...


Água a encontrar caminho irregular,

Por um corpo desmazelado,

Lido e anulado em simultâneo,.. 


A mão do tempo a segurar o sítio,

De onde sai a vida,...


Ela assustada,

A saber da solidão prevista mas ainda não anunciada,....


E os momentos de vida lá fora atapetados,

Sem que ela possa ou queira caminhar sobre eles 

                                                                                Tirado daqui

2024/09/28

muito mais tarde

mais tarde,
muito mais tarde,
quando a voz já estiver
esvaída no canto deste quarto,
e for com o silêncio que
já esteja deitado,
aí a posição da vontade,
o desejo de que um corpo
seja a minha sombra,
a minha presença,
talvez se transfigure,...

e a possibilidade de que surjam livros,
relatos soltos e sem sentido
sobre tudo,
virá como luz de um
novo dia ficcionado

                                                                           Tirado daqui

2024/09/27

Pés de barro...

 Ele próprio,

Ser incompleto,

Pés de barro autoconscientes,

Sem livros, sem contas, sem respirar até por opção da vida,...


Um prato de sopa,

Isto tudo explicado e rexplicado a si mesmo,

Como um inconsciente e iletrado,

Que por vezes se sentia,....


O tempo que o levava a despir-se,

A campainha toca,

Levanta-se e é ela,

Chora,

Pergunta assustado a razão,

Ela aponta ao coração,

E diz está vazio,...


Sem remédio 

                                                                           Tirado daqui

De: O Inferno (1994)

2024/09/26

...o bêbedo da vila encaixa


                                                                                   Tirado daqui

É aquela hora em que os olhos dizem luz,
O corpo reflete-se na sucessão de murros que o bêbedo da vila encaixa,...

Não há amores como o primeiro,
Nem há amores de todo já que os olhos quietos ainda não saíram dos quartos,...

Nas ruas a novidade é o silêncio,
O contrário de vida que o vento vai dizendo em recitações de dois ou três corpos,
Inertes e credores de atenção,
Que vão arrefecendo até ao limite da morte,.. 

E ao lado do suor,
Do anseio quase descontrolado de quem observa,
Um cão velho mas ainda fiel,
Aninha-se por mais qualquer coisa de afeto que ainda sobre

2024/09/25

Fracção de segundo

 Avisaram-me que era uma fracção de segundo,

Passa tão rápido que a defesa dos nossos olhos fecharem-se nem se consegue ativar,...


Mesmo assim resisti,

Pus-me à janela numa espera angustiante,

Que a lua mudasse de sítio,

Que a noite se aperaltasse mais que o costume,

Ela que já é uma dama tradicional a sair para um serão de ópera,...


Mas nada aconteceu,

Fechei-me mais uma vez em mim próprio,

Como se o homem casulo que sempre me chamaram,

Fosse o meu destino inevitável 

                                                                               Tirado daqui

2024/09/24

Dor de cabeça


 

...o destino violento

 Era tarde, tarde a ponto de a noite ser chaga e o dia ferida purulenta,

A ponto de a dor se espalhar pelas pessoas como peste,

Sem que elas mudassem a aparência ou o som dos respetivos corações,...


Com passos subtis,

A pesarem menos que as nuvens opacas que namoravam a lua,

Uma mulher tentava enganar o destino violento,...


Queixava-se do amor,

Que nunca o tinha tido,

Nem desejado,

Nem sequer lido em madrugadas vazias,...


Com ela a dor parecia contar menos,

Um pouco menos,

A ponto de achar que algo de mau se poderia passar consigo 

                                                                            Tirado daqui

2024/09/23

...frasco de pickles

 O tempo que a gente conhece, está enfiado num frasco de pickles. De repente aquele mês de todos os amores, seja ele qual for, com que vento esquisito nos deixe memórias, está em conserva diante dos nossos olhos. A marinar, como que falasse connosco e dissesse que é intocável até ele querer, e se calhar as nossas prioridades se invertam do simples materialismo, para as coisas do imediato. Sim, iremos um dia tirá-lo lá de dentro, renovado, com um sabor de terra esquecida no interior onde só vivem pessoas felizes e dignas de um olhar que demore dez voltas inteiras ao relógio. E quando o tirarmos daquele marasmo em que por enquanto se encontra, tudo será mais real. A comida vai saber a prados que verdejam, a água a chuva em céu sem mácula de maldade humana. Os beijos serão beijos, capazes de dourar a pele como se lá fora fosse um sol de final de tarde em concordância. Defendo pois que o tempo prossiga onde está. Talvez redija um ou dois poemas de caminho enquanto espero. Chamo a poesia que felicita os autores desta forma. Tem resultado, até que o acaso me faça descobrir outra.

                                                                                    Tirado daqui

2024/09/22

Manuel Tiago redux

                                                                             Tirado daqui

Ao longe sentia-se o magnetismo,

Da estrela de seis pontas,...


Levava as botas cardadas,

Um casaco rasgado e a alma,

O que poderia ser uma alma mas na qual politicamente nem acreditava,

A dizer-lhe volta para trás,

Viver para os outros tira anos de vida,

Bom é o egoísmo empacotado,...


E sem saber,

Enquanto uma chuva hexagonal começava a desconstruir o chão,

Era alinhado por um escritor de ficção,...


Seria o melhor resistente político,

Pelo menos o possível 

2024/09/21

querer e querer mais

eu queria,
queria mais
que o querer
deseja o fazer,
e o pouco se
esconde do muito,...

quis tanto,
mas tanto,
que a pele se
incendiou,
e subi aos céus
embalado,
pelo vento da
possibilidade,
do teatro gasto dos desejos,....

e num plano elevado,
da lembrança em vez do
falhanço,
fui de novo
um querer rejuvenescido,
de corpo firme
e vontade intumescida de mudar o mundo,....

e a pena de ser diferente,
esfumou-se no baile
de cores do que já tinha,
deixado de ser

                                                                              Tirado daqui

2024/09/20

Calças gastas de trabalho

 Ensina-me a namorar,

Um trovão,

Calças gastas de trabalho,

Um quarto para chorar,...


A vontade de te ter,

É um risco tremido,

Que inicia o teu rosto,

À sombra de um anoitecer com vento de todos os lados,....


E para mim,

Outros tempos,

Lidas as decisões da chuva,...


Saberei explicar-te o amor convenientemente,

Ácido e desnorteado

                                                                               Tirado daqui

2024/09/19

A água enoja

 A gente isola-se,

Como se não tivéssemos o que fazer


E rabiscos como este

Aproxima-te

Ficassem melhor sem pontuação


A água enoja

Quando sonhamos tanto

Que a dor sabe melhor

que qualquer coisa da noite


Estapafúrdia como tiver de ser

E o acaso o permitir

                                                                                  Tirado daqui


2024/09/18

Restos zero de contas mal feitas

 O carro sem controlo esgueira-se,

Aperta-se para caber nos deslizes da cidade,...


Desliza sozinho,

A verdade ficou de fora,

E os lamentos choram ao vê-lo passar,...


A nortada diz não gostar do que assiste,

Enquanto o último avião do dia,

Acompanha o entardecer,...


Números,

Restos zero de contas mal feitas,

Aparecem nas ruas,

Acompanhados pelo som entristecido do acidente,...


Não te recordas pois não?,

Talvez porque nada disto aconteceu

                                                                             Tirado daqui

Sergei Romanov

2024/09/17

O tempo estava sempre contado..

há muito dos dias
que deixo na ponta dos dedos.
os cheiros por cumprir,
a vontade de pretender
o inconfessável,
e conseguir só um som,
uma ideia,
um desejo num suspiro de prazer,....

há a prisão,
a revolta de que a noite
venha,
e finalmente haja criação,
poesia à solta num quarto
que dança com sombras,....

e para mãos,
bastamos nós,
os que apreciam a lua como
destino de revolta

                                                                            Tirado daqui
SIGOURNEY WEAVER
 Por THEO WENNER 
para o DOCUMENT JOURNAL
 Maio 2022



2024/09/16

Cruzei a esquina certa.

 Deixa-me de fora,

Escrever sozinho é melhor que uma brisa,...


Há um velhote que mo diz,

Enquanto tira um papel dobrado do bolso do casaco,

E confessa que conheceu Saramago,...


Contou-lhe a história de uma laje de pedra que flutuava,

E podia servir de degredo aos sem esperança,...


Cruzei a esquina certa para o encontrar,

Talvez seja mentira,

Mais uma antes de chegar a casa,

Sozinho e diferenciado,...


Deixa-me de fora,

Ao longe valho mais do que um pretérito perfeito,

Mal acabado 

                                                                                 Tirado daqui

(Panel of hell, Hieronymus Bosch, The Garden of Earthly Delights, c. 1480-1505)

2024/09/15

A troca de tiques

                                                                                  Tirado daqui

De: O Profissional (León) 1994

Troca-me o tique das pressões do dia,
o esfregar de um olho,
o bocejar de autómato sem desejo nem fé,….

a lei das frases feitas,
que grita aos sete sóis por
mais escuridão,
por uma noite vestida de sombras
de morcego,
e refregas com fantasmas,
os nossos e os dos outros,….

assim como quero a vontade,
ficar de dedos escorregadios no lambuzado
do sexo de circunstância,
também nos desejo como desejo,
e por isso não quero um tique,
este tique,
talvez outro,
mas não esta repetição pueril de medos
contidos


Até que a raiva o permita

 A mesa está cheia de folhas brancas,

Desusadas,...

Músicas que se amontoam,

Sem qualquer ordem especial,

E pensa-se,...


Pensamentos específicos,

Encorpados até como um bom vinho,...


É um homem velho o desafiado,

De vida já vivida,

E que se assusta com pouco,

Por isso deflagra o explosivo,....


Que mais não é do que dar uso às folhas brancas,

Da forma mais vingativa possível,

Até que a raiva o permita 

                                 Tirado daqui

2024/09/14

A saia que era da avó..

 O café não arrefece. A pequena colher já com laivos de ferrugem para um lado, para outro. A força da gravidade replicada. Ela enerva-se. São as horas que tiverem de ser. Não gosta de fazer esperar ninguém. Há uma nódoa na roupa. A saia que era da avó. Ela não iria gostar se ainda por cá andasse. Dão-lhe um bom dia inocente. Ela responde com um olhar altaneiro, e egoísta. A nódoa que não sai. Está atrasada. Há pessoas para encontrar, assuntos para resolver. Tempo para domar. Essa é a parte que menos gosta. Saber que vai perder mais adiante, tudo o que tiver ganho na força do momento. E a nódoa que não sai. Haverá pó de talco neste maldito sitio. Tem de deixar de aqui vir. Há mais cafés no mundo. As pessoas são feias, com um ar desesperado. Inquisidoras. Aleivosas mesmo. E a porcaria da nódoa que não atenua. Vai levantar-se. Há um tarado que olha para ela. Cabelo lambido, olhar perigoso. Despreza-o. Se pudesse veria-o a sofrer até que...
Levanta-se. Dois sacos numa mão. A mala com o computador no ombro esquerdo. Na rua chove. Vai ter de se molhar. O carro está longe. O cabelo precisa de humidade. E ela está atrasada.

                                                                       Tirado daqui
Talk to Me (2022) 
Reali: Danny Philippou & Michael Philippou

2024/09/13

Mas sabes?

 Olá,

Esta é a carta possivel de todos os impossiveis em que já pensei,

Desde que fizeste desse canto do mundo a tua beira mar,...


A minha escrita evoluiu,

Estou feliz,

Não chuto mais poemas para a frente,

Agora sou chutado,

Revirado, maltratado,

Como sempre achei que isto de juntar palavras deve ser,...


E tu,

Há verdade por onde andas?,

As pessoas juntam as palavras como recreio de criança,

Como eu cada vez mais acho que deve ser,

Ou nem sequer se distingue a luz da escuridão?,....


A desilusão já não mora comigo,

Ainda guardo o pedaço de papel ratado,

E pleno de desespero,

Que ficou de herança dos teus passos finais onde ainda estou,...


Mas sabes?,

Relevo tudo,

A vontade pesa mais que o ódio,...


E a minha escrita acompanha-me,

E ajuda que cada lei do tempo,

Me aqueça na tua ausência de frio construida

A Girl’s Own Story (1984) 
de: Jane Campion
                                                                              Tirado daqui

2024/09/12

...ninguém é mesmo ninguém

 Faz de conta que não estou aqui,

Que ninguém é mesmo ninguém,...


E de nós todos,

Os que somos chão em frase escura de ruína,

O melhor é o que acalenta uma pequena flor,

Um singelo ponto de beleza,....


O som que aumente,

Que venham gritos feitos de destino,

E fenómenos de amor repartido,...


Que façam sorrir as crianças,

Presas nas casas semi destruídas de um presente que não se toca


                                                                           Tirado daqui

Cinema Paradiso (1988)

2024/09/11

Uma mulher feia...

Sabes,

Dizem-me que os equivocos se rasgam em bocadinhos,

E há sempre sol quando a noite se encavalita mal nas escadas dos dias,...


E eu vejo sempre o surreal,

Cenários abstratos quando penso nisto,

E desta vez é uma mulher feia,...


Já me aconteceu serem cães bonitos,

Que desfilam sem qualquer ordem,

 Nas ruas da minha cidade

                                                                                     Tirado daqui

2024/09/10

Explico aos soluços

 Falta qualquer coisa ao ser que lamenta,

Uma precisa premissa,

Dois lamentos,

Um dia a começar persistente,...


Qualquer coisa,

Não sei descrever,

E o que mais voltar de um dia,

Dificil de entender,...


Explico aos soluços,

Isto que me intriga,

E são balanços de vida que,

Agora me assustam,...


E tornam a vida,

Se calhar dificil de recortar nos cantos,...


Mas coisas destas,

Não se podem sequer admitir 

                                                                                  Tirado daqui

2024/09/09

Alguém confiável..

 Ela era daquelas pessoas para quem valia a pena olhar. Aterrorizava-a perceber isso. Achava que tinha um caminho próprio para seguir, e isso era suficiente para que fosse incapaz de desbravar percursos novos, e sequer de ter a iniciativa para abordar as pessoas quando delas precisava. Escondia-se detrás de um cabelo sedoso, castanho amendoado, que a envolvia a cada passo que tinha a coragem de dar. O corpo, era ocultado por roupas largas, de cores discretas. Tudo menos revelar as formas insinuantes e femininas que sabia ter, mas que se esforçava, de uma forma atroz, por esconder na rotina que a assustava. Conseguia encetar conversas que interessavam. Queria ser alguém, no topo de uma escada que ainda nem sequer sabia onde ficava. Alguém confiável, disponível ao diálogo, compassiva com todos que disso precisassem. Em suma, uma mulher que deixasse marcas por onde passasse. Mas sempre com uma condição. Nunca ser vista como um pedaço de carne, com utilidades, concretas ou dúbias, que a deixassem enojada. E todos os dias anotava mentalmente as formas de evitar que isso acontecesse...

                                                                               Tirado daqui

2024/09/08

As gaivotas do fado

 É minha a tortura,

Explico-a em poucas palavras,...


Há um passeio à beira tejo,

A avidez sádica da plebe rodeia os restos de um que desistiu de viver,...


Sigo com o arrulhar do rio,

As gaivotas do fado já se envelhecem a si próprias,...


Um cheiro a envelhecer acompanha-me,

Enquanto me assegura ser a sombra que me falta,.. 


Páro para pensar em tudo e em nada,

Enquanto o anoitecer caminha para mim,

Como a ameaça que sempre foi,...


Não me sinto Pessoa,

Até porque não me acho dono,

De nada disto 

                                                                              Tirado daqui

de: Tatyana Alanis

2024/09/07

...suspiro de Benjamin Button

 Fechado numa estrutura decrépita,

Medida em altura e em profundidade de almas,...


Os braços rasgam-se,

A forma desprivilegia-se em relação ao conteúdo,...


Há sonhos materializados no chão,

Rasgados a apodrecer,

E que envelhecem num suspiro de benjamin button,...


Não temo por mim próprio,

Às vezes a frivolidade conta tanto,

Em cenários de ruína e morte,

Como a vontade de elevação aos céus 

                                                                        Tirado daqui
Filme: Carta de um cineasta para a sua filha, 2002
Eric Pauwels

2024/09/06

Nas nossas mãos

 Na verdade só bastou perguntar por ti à razão,

Ao sol que todos os dias me acompanha,

E soube que já não pertencias ao amor,...


Eras agora da água,

Das gotas que vivem nos vidros da casa que foi nossa,.. 


No meu corpo quando me benzo todas as manhãs,

És o elemento mais puro da natureza,...


E há fantasmas que me confortam com isso,

Explicam que o inevitável surge de debaixo do chão,

E por isso,

Conformar é o verbo certo,.. 


E escrever o bálsamo que pesa,

Nas nossas mãos como a loucura,

Da qual fugimos

                                                                                Tirado daqui