2019/04/20

Amor alagado em ódio (Parte final)


Perdoou-lhe. Não tinha muitas amigas, mas dedicava-se a ouvir as conversas das mulheres mais velhas. E uma coisa fixou. Em casa, a submissão ajuda a passar o tempo. A educar os filhos. Dedicou-se a tentar ajudar mais o seu homem. Esmerava-se no vinco das calças, aos domingos, para irem todos à missa ouvir a homilia do senhor Prior. A marmita do trabalho era arrumada com enlevo. Só com coisas que sabia que Afonso gostava. Um dia até lhe fez uma sanduiche com mortadela italiana. Uma coisa cara. Afonso só lhe deu um sorriso desmaiado, quando lhe perguntou se tinha gostado. Mas o mal não parou. Vinha sempre depois de noites na taberna. Os miúdos dormiam no quarto, e Amélia aguentava os gritos. Arrastava o homem, com os copos, para o alpendre do quintal. Ele não era de muitas palavras. Só lhe dava murro, após murro, após murro. Amélia aguentava tudo, a chorar baixinho. Pensou em fugir. Levar as crianças para fora da aldeia. Esconder-se num sítio tão longe, que ele nunca mais a iria encontrar. Depois falou, ao de leve, aos pais o que se passava. Os dois ficaram tão assustados, que rezaram com a filha, e nem sequer tocaram mais no assunto.
Amélia voltava a casa sem forças. Perdeu peso, não comia. As pessoas da aldeia perguntavam-lhe o que tinha. Apontavam, sem usar as mãos, para o nariz partido de uma jovem que se desvanecia, depois de suspirar beleza durante anos a fio. E tinha os braços pintados de roxo, sem que uma palavra o pudesse justificar.
Afonso andava embeiçado por uma cigana dos arredores. Sabia que a vida poderia esvair-se, um dia qualquer, no cano de um revólver dos irmãos da moça. Mas era mais forte do que ele. Todos os colegas tinham arranjos por fora. E ele não podia ser diferente. Prometeu à rapariga que fugia com ela, mas nunca arranjou coragem. Chegou a casa todas as noites, com um peso na consciência tão grande, que a única coisa que sabia fazer era faltar ao respeito à mãe dos seus filhos.
Comprou uma arma, um dia, sem saber porquê. Levou-a para casa, escondeu-a debaixo de duas pedras, ao pé do canteiro das flores. Estava tão bem embrulhada em panos, que nunca ninguém iria perceber o que ali estava. Os dias passavam, e sabia que queria parar com o que estava a fazer. Ia, de vez em quando, normalmente aos finais de tarde, à Igreja. O mesmo padre que o tinha batizado, que o tinha casado, continuava ali. Envelhecido, doente, capaz de andar agarrado titanicamente a um andarilho. Mas sabia que só sairia dali, um dia, num caixão. Afonso sentiu confiança para falar com o prior. Mas ouviu mais do que disse. O funcionário de Deus, como gostava de se chamar, percebeu que estava prestes a perder um matrimónio na Paróquia. Mas só se podia socorrer das palavras, e dos conselhos que o Evangelho dá. Nada mais.
Um dia, à saída da paróquia, Afonso teve um acidente grave. A mota com que andava há muito tempo foi abalroada por um carro, e deixou-o com um corpo desfeito. Sem uso.
Recuperou, Amélia esteve sempre lá. Adorou-o como sempre tinha feito. Descreveu todos os passos do amor que ainda a unia a ele, como sempre tinha feito. Afonso acalmou, até que um dia, só de humedecer os lábios numa cerveja na taberna da aldeia, no primeiro dia em que conseguiu sair após o acidente que quase o matou, os demónios voltaram.
Mandou Amélia sentar-se na mesa da sala. Foi ao quintal, desenterrou a argamassa de panos que só ele sabia onde estava, e que só ele sabia o que continha, e pegou no que lá estava dentro. Pousou aquele bocado de metal na mesa, e sentia que tinha a mulher que lhe suportara grande parte da sua vida adulta, nas mãos. Os miúdos estavam com os avós. Pensou em acabar com tudo. Pegou naquilo, Amélia sentia o frio do aço encostado à cabeça. Afonso tinha perdido o pai há pouco tempo. Já nada o prendia à razão do passar dos dias. Apertou o gatilho. Amélia estava tranquila, tombada sobre a mesa. O rosto, que um dia lhe prendera a razão e os olhos, repousava no meio de tanto vermelho vivo. Afonso parecia não perceber o que tinha feito. Tremia, com aquele pedaço de metal nas mãos. Sentou-se na cama, a olhar para o chão. Pensou no primeiro beijo. No dia do casamento. Na alegria, minguante, quando conheceu o primeiro, o segundo, e o último filho. Nas andanças porque passou para conseguir ser homem, e responder às exigências de ser chefe de família, e pôr comida na mesa, e ser respeitado por o fazer.
Foi ao quarto dos filhos, que nem ouviram nada. Olhou para a cara de cada um deles, e acariciou as crianças que tinham acabado de perder a mãe, por sua culpa. Encostou a arma à têmpora, e carregou. Nada aconteceu. Tinham-se acabado as balas. Percebeu que não tinha de morrer. Tinha de assumir o que acabara de fazer.
Nos tempos que se seguiram, a aldeia que fora a mesma de tantas outras, esvaziava-se de sentido. De alegria. De vontade de prosseguir a rotina de sempre. Nunca tinha acontecido nada ali, assim, tão sem explicação. Os filhos de Afonso e Emília ficaram com os avós. Tornaram-se os meninos da má sorte. O assassino da mulher ainda está na cadeia, enquanto se escrevem estas palavras tão ficcionais, como o que a realidade permite. E a vida continua…

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