A descoberta do cadáver aconteceu no quarto. Abdul Wahid acordou sozinho num hostel da rua da Madalena, em Lisboa. O sol intrometia-se pelo pequeno e mal cheiroso quarto, desfazendo as defesas do pequeno e inexperiente árabe. Ao lado da cama estreita onde se achou a si próprio a dormir, deitado de barriga para baixo, salpicado por pequenas manchas de bílis esverdeada e pestilenta, encontrou um desconhecido. O corpo estava nu, com os olhos vidrados no teto. Pela pele exibia escaras de ferimentos desconhecidos. O dedo grande do pé direito tinha sido amputado, e já gangrenara. As mãos estavam dispostas em cruz no peito. Os livores de uma morte confirmada, mas recente, espalhavam-se por todo o corpo. O filho de Hassan e Fatma, nascido no pico do Verão quente de Carachi, respirava afogueado. Pedia ar, mas ele não vinha. Sentou-se na cama, sem poder assentar os pés no chão. Tinha um corpo inerte a centímetros. Dois toques secos e inesperados na porta quase lhe fizeram o coração parar. Reparou que estava nu da cintura para baixo, e que vestia apenas uma camisola de alças rasgada, e uma meia sem calcanhares. Não havia mais roupa à vista, e só uma bolsa de tiracolo repousava a um canto do quarto. Mais um, dois, três toques secos. Abdul reconheceu a sua língua. As memórias começaram a assaltá-lo de sopetão, como pontapés sucessivos na cabeça. Lembrou-se de uma mulher. Era noite. Queria, mas não conseguia recordar-se onde estava naquele momento. Só se lembrou dos murmúrios daquela ninfa do paraíso. Era escorreita, seca, cabelos côr de tâmara, e olhos que deixava no mistério. Pegou-lhe na mão, e levou-o por um sítio escuro. Mais toques na porta. Abdul Wahid sentiu a vida a escorrer-lhe pelas mãos….
2024/04/30
2024/04/29
Tiques autoritários
Tirado daqui
2024/04/28
decidido ainda foi....
foi decidido que seria um domingo
tranquilo,
sem arribas perigosas
para percorrer,
um vento que
bruxuleante,
indagasse aqui e ali,
pelas curiosidades das pessoas,...
decidido ainda foi
que se espere,
haverá um grito
irregular,
trémulo,
de uma voz provável
de criança,
que virá trazido
da alvorada,
como um aviso do medo
enraizado nos bagulhos da terra,...
decidido por uma visão
sem rosto,
sem corpo,
de olhos apenas mal
desenhados na chuva,
que não tarda
invocará o fim da desilusão
2024/04/27
...senhores de anéis enferrujados
Não acredito em ressentimentos,
Em ir para a cama com a mente balofa
E alguém a dizer-nos que o tempo pesa,
E está frio de mais para termos os pés quentes de estarmos repesos,....
As mulheres de tetas repescadas,
Dentes apodrecidos,
Patranhas na ponta da lingua,
E bilis solta que azeda ao rigor dos elementos,
Nada sabem sobre isto,....
Só os senhores de anéis enferrujados,
Fazem contas e nos explicam,
Que ganhamos mais que perdemos com a,
Desvirtuação da memória iludida
Tirado daqui2024/04/26
Processo gradual
Aprendera onde estavam as coisas,
O espaço que tinha de ficar entre a mesa e a parede,...
Deixar o chão com espaço para respirar,
Sentir recordações a correr como pó,
E deixar acima de tudo a singeleza da luz natural,
Ocupar a candura das paredes brancas daquele espaço,...
Tinha sido um processo gradual,
Inocente até,
Várias pessoas lhe tinham ensinado que a felicidade poderia depender de algo tão sem importância,...
Que deixava as coisas que realmente importavam,
Como o tempo da vida,
O cheiro da morte,
E o lugar de fruição da poesia de qualidade,
Completamente em perspetiva
Tirado daqui2024/04/25
Lentidão do medo
Tirado daqui
2024/04/24
Dia santificado
O que eu queria dizer era;
Ter um discurso correto,
Fazer incisões na prosápia,
Para que os lamentos saiam certos,
Não haja hesitações,..
Talvez me encontrem um dia santificado,
E hajam desejos de rutura espalhados pela cidade,
Inalcançáveis para a minha vontade de proselitismo,...
E assim,
Aos saltos pequenos de estrofes,
Eu um dia chego lá,
Vou acordar na antiga Atenas,
Com Platão ao meu lado
Tirado daquiMoka Pot - William Kentridge .
África do Sul, 1955 -
Linocut, 26 x 18 cm.
2024/04/23
...imortalidade de um anónimo
Um dia quando terminar a hora,
E os dedos pesarem o mesmo que o coração vivido da felicidade,
Não seremos todos transparência,
Páginas suficientes para a imortalidade de um anónimo,....
De mim esperarei a tremura,
Um corpo ao deus dará,
E a alma,
Se existir,
Trancada como a vontade frustrada do adeus,....
E ao fim e ao cabo somos o melhor de nós próprios,
Depois de o sol se pôr,
E tudo isto ser falso e moribundo
2024/04/22
Dizer
dizes,
dizes de mim,
da força,
do desespero,
das dores lancinantes
sem razão,
dizes em choro,
em voz abafada,
dizes a porção exata do vazio,....
dizes de precisar,
sem saber,....
dizes a luta,
e estou farto,
de dizer,
bater,
agredir,
ensaguentar,
regressar a menino,...
e dizer da minha mãe,
que não lhe perdoo,
que a morte a tenha levado,
sem dizer
Roberto Ferri
Details
2024/04/21
um zunir de luz...
a voz,
o amordaçar,
tantos passos
que se perdem
enquanto se conta o adeus,....
um zunir
de luz que se some,
enquanto os olhos
condoem-se para continuar abertos,....
verdade,
somente a verdade para explicar,
como os braços se prolongam
no retrato do corpo,
o ser é mascarrado
na lama da chuva que cai,...
e um passarinho que
saltita,
quando já não és,
foste antes de partir,
e agora,
o enleio do ter
e haver,
desapareceu,
até quando voltar
2024/04/20
Eu, e ele e ela
haver um espaço
no canto do quarto,
onde o bolor e o
cheiro de perfume se confundem,
onde ela voa sem realmente sair do lugar,...
com doçura,
a calma dos provetos
anos longe,
ele percebeu-a,
disse-lhe de tudo
como num livro sem fim,...
mas ela foi ficando,
e agora em olhares findos,
não sabe dele,....
só se desnorteia,
sem perceber
Buñuel,Chinchón
Fotografia de 1962
2024/04/19
Contornos de rostos
Tirado daqui
Os Cyclops (1957)
Ao fim e ao cabo, todos aqueles rostos eram confiáveis. Todos os dias os via, habituara-se a duvidar de tudo, e até daquelas pessoas que não conhecia, e fazia por não conhecer. Mas chegara o dia em que, tudo indicava, teria de mudar a sua conceção. Havia sorrisos, contornos de rostos sumidos pela indiferença, pelo passar doloroso do tempo. Mas havia essencialmente sinceridade. Luxúria pelas passagens simples e irrepetíveis da vida. Era isso, confiabilidade, que se tratava aqui. E ela era reconhecida. Passou por isso, a partir daquele dia, a considerar cada especificidade que via. E renunciava ao adeus, ao desprezo. Concentrava-se nos defeitos de um rosto, na perfeição em construção de outro, nas lições de vida ocultas de outro. E readquiriu a felicidade. A vontade de deixar marca no solo em cada passo que passava a dar.
2024/04/18
medo,...e um templo
e em dias curtos
desenhas a cúpula,
o capitéu,
as portas e janelas,
e falas da fuga de um templo,...
tens medo,
e não há sítio no mundo,
frases certas para apurar o tempo,
a razão,
a política apropriada para o fim,....
e com medo,
fazem-se países,
defendem-se prisões indefensáveis,
e há o que sobra,
do templo que desenhaste
2024/04/17
Vilipendiei
Tirado daqui
desdisse,
contrapus,
vendi ao sol restos
de água gelada,...
enganei,
vilipendiei,
guardei em gavetas
o perfume da tua gola,
os restos esfarelados,
da pele que me seduziu,
e que escapou quando saíste,...
depois de dizer,
relevei,
perdoei,
encafuei-me numa
cama,
senti o sol
viralizado,
e como mentira,
esperei o sono,
a olhar pra luz,
entediado
2024/04/16
Coisas em repouso
2024/04/15
Medo era inevitável
Uma discussão baseada no medo,
Vontade negada de fazer mais,
Dizer mais,
Resistir a uma herança de descrédito,
Para dar o safanão final naquela condição de infortúnio,...
E que assim se começasse a dar passos que contassem,
Um desejo real por carinho,
Crenças comuns nas mesmas coisas,
Aquela musica que viesse ao nosso encontro,
Para nos tornar felizes,
Dignos de qualquer coisa,...
Mas haveria sempre uma crença,
Que esconderia a luz,...
Por isso o medo era inevitável
2024/04/14
Próximo passo
Não se acalmava de outra forma que não com um beijo. No cimo da cabeça, por entre vigorosos benfazeres no cabelo revolto, alourado. Não era pessoa de fios na pele, de sentimentos de meio termo. Precisava de sentir-se apertada, até constrangida de alguma forma. Punha as cartas na mesa em relação aos sentimentos. Gritava. O seu limite parecia não existir. Revoltava-se contra a solidão. Os limites da atração humana. Até o facto de o tempo ser um conceito escasso, inexistente até, já que o entendia mais como uma reação do que como uma realidade, a fazia ser apologista da violência verbal. Do insulto pelo prazer do insulto.
Um dia quis dar o próximo passo. Escolheu um entardecer junto ao mar. Com um sol refém do inverno que dava os últimos suspiros. Acalmei-a, elogiando a singeleza da sua figura. A resposta demorou, quase ao compasso do arrolhar das ondas...
2024/04/13
Transmuta-se numa mulher madura
Tirado daqui
Foto de: Angelika Ejtel
2024/04/12
Noite inteira de vozes arredondadas
De vez em quando alguém toca nas nuvens,
E devolve a razão à terra,
Passam-se horas,
O conceito de tempo desfaz-se como a pele morta de uma pessoa desiludida,...
E do outro lado do mundo,
Assumindo que se está onde já não há sol,
E nos antípodas de onde a neve cai para esconder o sangue,...
Há uma noite inteira de vozes arredondadas
Amedrontadas para defrontar,..
Reescrevo este que é um medo sem sentido,
Fecho o envelope com a ponta da lingua,
E segue como um rasgo de real,
Para que leias quando o acaso o permitir
2024/04/11
História de fim abrupto
um livro tem de começar por algum lado. A razão está do lado de quem lê. Por vezes de quem escreve. Há nuvens no céu, frases por terminar ainda antes de a respiração ser a certa para que o discurso continue.
E um almoço. Duas pessoas sentadas à mesma mesa. Não necessariamente a olharem uma para a outra. Podem sentir os pés a roçar, o que causa calafrios e a vontade de adiar o discurso.
A sala é impessoal, fria, com duas janelas que deixam, mal, entrar a luz fosca de um início de tarde de outono. Duas pessoas que não se conhecem, apesar de acharem que sim.
Uma mulher atenuada na dor. Com uma aparente metade da vida cumprida, e passos trémulos para abraçar a próxima. Um homem mais novo. Pouco mais, mas com um olhar menos comprometido. Mais doce. Falavam ocasionalmente. Sem grande intensidade. Ele dizia ter estado já em muitos lados, mas que o seu local preferido será sempre um recanto especifico da sua casa. Ela não. Um silêncio descontinuado com esgares ocasionais para o exterior através da pequena janela que os ladeava, era revelador da insegurança sentida. Mas esta é uma história, assim sendo, condenada a um fim antecipado. São duas pessoas sem prioridades de que falamos. Com uma pele emvelhecida. E que irão levantar-se, sair, reduzindo assim a possibilidade de este momento se repetir. E, como tal, a história acaba aqui
2024/04/10
polifonia, monotonia, fim
polifonia;
definição de som discórdico,
escarrado de gargantas
ou evoluído,
em direção a paraísos de cores
e tonalidades,...
monotonia,
há vento na mais estreita rua
de reikjakvik,
caminhamos em fila,
abraçados pelas luzes
que a noite fere por ali,....
abrimos um livro,
é sartre explicado aos desesperados,.....
fim,
particípio de passados
que dormem juntos,
e de mão dada,
testamos a vontade de ascender
2024/04/09
engulo o orgulho que gosto de trazer na traqueia
Os passeios,
as ruas anuladas,
tantos passos para nada dizer,
engulo o orgulho que gosto de
trazer na traqueia,....
um carro passa,
e outro,
e outro,
nervoso e incapaz de te segurar a mão,...
há mais que uma luz nesta rua,
e há gritos,
e há mentes fora um do outro,
e pensamentos de morte,...
há tanta coisa,
faz-me a vontade,
e a luta pode continuar no escuro
2024/04/08
Choros de prata no Sião
Dormi na rua,
Tapado pelas estrelas,
Envolto na dúvida do medo,
E com os gemidos maduros de uma noite que é mulher,...
Fechei os olhos e passei anulado pelas flores de um campo mudo,
Foram meus os intervalos de ouro do mundo,...
Houve lamentos,
Choros de prata no Sião,
E loucuras sem nome num deserto dourado,...
E ao acordar,
Alguns rostos disformes saltavam-me à vista,...
E com a persistência de um louco,
Fiquei a ver o real entortar-se ao redor,
De uma árvore moribunda
2024/04/07
...terminou lá atrás no dia
Se não eras feliz,
A razão era uma dança,Uma qualquer dança que a peso ias fazendo,...
Não era meu,
Ou minha a culpa,
Não era certo que quase fosses a luz,
De um assunto que terminou
2024/04/06
...poeiras soltas de um livro
acho que decidi,
dizer de mim umas poeiras
soltas de um livro,...
pensar do que fui,
de onde nunca estive,
das vontades iludidas que
contrariei,...
a perceção resumida,
haverá encontro diferente,
do medo de tudo isto,
2024/04/05
Calo-me em adoração
Hoje esqueci-me do que dizer,
O corpo é uma caixa cheia de olhos,
Que me disseca,
Recalca,...
E a pensar que o mundo,
Começou de um útero,
Calo-me em adoração
Tirado daqui2024/04/04
José e Laura
José gostava de laura. Ensinava-lhe os nomes das árvores, dos animais, das pequenas imperfeições que as pessoas lutavam por esconder. Saía depois na paragem de autocarro. Ela seguia. José sentia-se bem a caminhar. Gostava de sentir que chovia em todos os seres vivos, incluindo em si próprio. E pensava em laura. Nunca fora bom em ciências naturais. Nem no estudo do concreto, através de ideias irracionais que outros tenham tido. Só queria pensar nela. No pouco que faltava para o próximo encontro. Nas formas mais simples e diretas de aglutinar palavras, e assim deixar com que poemas, pequenas esferas poéticas como lhes chamava, fazendo concessão ao irracional, lhe caissem no regaço exatamente antes do momento em que eles se separavam. Era feliz assim, porque não sabia ser feliz de mais nenhuma forma. E antes de adormecer, refugiado no pequeno retalho de mundo que ninguém alguma vez iria saber ser o seu, pensava nas pessoas que eram diferentes de si. Nos tristes, nos opacos, nos falsamente felizes, na sua própria versão do passado que matara no momento em que conhecera laura. E desenhava na boca um sorriso. Falso. O autor não terá nunca coragem de lhe dizer isso...
2024/04/03
Rumor de verdade
encontrei-a num rumor de vaidade,
encostada,
desapropriada,
vestida de luz,...
encafoada numa caixa,
ressoava um corpo inteiro,
como se um equívoco,
um minuto de sexo desprendido,
caísse do ceú,...
em cima do colo,
de todos que a resguardavam