2023/08/31
Mesas modestas
A partir do segundo dia,
Juntavam-se em nuvem e começavam,
Arborescentes e designados como raizes,
E as tarefas saíam,
É certo que pela ordem errada,
E desencontradas no tempo,
Mas iam sendo feitas,....
Flores,
Mesas modestas e de tampos envelhecidos,
Constavam de contos que,
No decorrer entardecido do tempo,
Iam fixando tradições,
E ditando a recontagem inocente da história
2023/08/30
Página de livro por ler
Confundias o sorriso,
Com a desilusão,
Uma página de livro por ler,
Com a ignorância somada aos silêncios,...
E repito-me,
Repito-me por todos os sitios,
Todos os impasses,
Todos os gritos que deixo de dar,
Para dizer que sou apenas eu,
E dói tentar ser outro,
Quando ser este,
Já soa como um pedaço de ser,
Por estrear e sem prazo,
De fim previsto
2023/08/29
À laia de sopa
À laia de sopa, lábios húmidos e
Frações curtas de um mar,
Decisões certas por momentos de
Eugenia, e o som,
O que te arregimenta contra mim,...
Copo meio cheio, bigodes à solta,
Um país, duas visões do certo, nenhuma
Do errado,...
Anoitece, sempre a luz que se esvai na
Poesia, que me assusta, porta a bater,...
Passos no escuro, visto-me de
Novo normal
2023/08/28
Inatingiveis 2023: No bar (há 14 anos e meio escrevia-se assim no Inatingiveis)
Aridez
E deste qual razão?,
Diz, abriste o peito por bem,
E o desejo,
E o que saiu sem forma,
Sem contornos,
Sem limites,...
Tudo te assinalou a razão?,
Ou foram só argumentos dúbios e desesperados,
Para que fossem permitidas ilusões,
E esta rua,
Sem limites e sem espaços ocos,
Se tornasse na aridez que sempre desejaste
2023/08/27
Dever motivacional
Eu não tenho que escrever todos os dias,
Não é uma obrigação,
Nem sequer uma fatalidade,...
Talvez um dever motivacional,....
Nada que uma passagem mal conseguida,
De um livro mediano,
Não me retire pela leitura
2023/08/26
Ensimesmado
Ele que suspira por água,
Ela que estende roupa ao sol de desvios incertos,
Ele que assoma à luz e, de mãos trémulas, pede mais nicotina como reserva,
Ela que fala de desespero,
De um cantinho para desdobrar os sacos de plástico,
Até de amor que chega na encomenda do correio,...
Ele que ouve,
Ensimesmado e sem argumentos para retorquir,
Ela que segue a vida porque há uns bifes para temperar,
E ele que veste um casaco roto no cós,
E sai de casa amparando a porta,...
Lá fora um dia receia emendar-se
2023/08/25
Emancipação
Que fosse por desespero,
Pelo cheiro de maçã denunciado,
Que fosse por livros deixados por ler por desinteresse,
Ou repúdio,
Fosse pelo que fosse,...
Haveria a noção latina de Direito,
Como justiça a fazer por ser sempre relegada,
Desprezada,...
Ela defendia a emancipação,
Mas praticava a desonra,
Gritava prazer,
Mas iludia-se com sons perdidos de paraiso,
E não havia memória para que sofresse tanto,
Como o escolhia fazer agora
2023/08/24
Carapauzinhos fritos
Deixem-me outra vez respirar a escrever,
Há um prato de carapauzinhos fritos sobre a mesa,
Dois copos bacilentos de vinho,
E um cheiro a nozes pulula no ar,
Rir é o que se quer quando se exercitam as falanges,
E com isso se descruzam as pernas vezes sem conta,...
Até que surge o dia,
E há vermes pela casa,
Minutos contados debaixo da pele,
Como se fossem cinzentismos esperados,
E lá vem a escrita,
Com berloques floridos,
Amores perfeitos em jarras,
Que murcham mas simulam a dopamina,
Que se precisa
2023/08/23
Casa cheia de Arrependimentos
O que fariam as longas horas perdidas,
Os caminhos para qualquer sítio nunca explicados,
As vezes em que fomos desilusões,...
O que fariam as cores da paixão inventada,
E que nunca irá existir,....
O que fará uma casa cheia de Arrependimentos e lugares estranhos,
Como último recurso para o medo,
O que faremos sem a luz certa para perceber que falhamos,
Quase tanto como o ódio aparece à noite,
E se deita na nossa cama
2023/08/22
Jogo de sombras
Um jogo aberto de hipocrisia,
Com peças delicadas cor de jasmim,
E volatilidade representada nos olhares esquivos,
Que se deitam sobre esta paisagem feliz,...
Era um entardecer cálido,
Com brisas indolentes e inofensivas,
Que deixavam em suspenso a fala,
A escrita,
E as imagens falsas de concordância
2023/08/21
Sebenta dos impuros
Fazer mal,
Mas mesmo exercer cinismo com todas as cores do desdém,
Saltar muros para fugir aos confrontos,
Esperar novas madrugadas porque as antigas perdem significado,,..
Anotava tudo na sebenta dos impuros,
E seguia cuidadosamente o caminho,
Evitando os fossos da pureza,
As caras previsíveis das putas,
As esmolas que se dão aos fracos,..
Chegaria lá,
onde já não se precisa do sol
2023/08/20
...músicas por tocar
Está quase no fim da noite,
Dos escombros é como se nos dissessem Olá,
De todas as formas violentas,
e em notas de rodapé que nunca se entenderão,...
Há mais qualquer coisa que a morte dos vencidos,...
Num som cadavérico,
Levantam-se das covas uivos de meninas inocentes,
Para quem a vida isolou-se em fotos por revelar,...
E músicas por tocar,
Como se o mundo tivesse agora de recomeçar,
Em casas cobertas de colmo,
Com silêncios amarelecidos,
Envelhecidos,
Mas confiáveis mesmo assim,
aos mais renitentes dos desanimados
2023/08/19
Veias salientes
Há tanto tempo,
Demasiado tempo que não há versos por aqui,
Os olhos saltam das órbitas,
Há decisões mal tomadas,
Os pessimistas sentem o sangue a correr ao contrário,
Com as veias salientes e o desânimo espelhado nos passos,....
Pode dizer-se,
Enquanto os olhares nunca se levantam do caminho,
Que não há alegria,....
E o tempo incendeia-se até,
De tão consumido que fica
2023/08/18
Devassa da minha carne
Eis a prova da devassa da minha carne,
Da loucura de um livro aberto,
Parte certa do voo da razão,
É um olhar desfeito,
O que trago ao peito por inutilidade do desespero, ....
Eis a prova de que rio para não chorar,
Numa loucura amadurecida,
Posta em sacos e acumulada aos pés da cama,
Suja e perigosa,
Que ondula como uma fatalidade,
No correr do mar
2023/08/17
Desabrocha dos céus
Um problema que todos os dias desabrocha dos céus,
Pássaros em fila nos beirais dos prédios,
Enfrentam o tempo que se desfaz em pedaços sem conta,...
Certificam-se que a forma de contar esta história,
Precisa e previsivel,
Tenha de ser a correta,...
E há os que asseguram que todo este perigo,
Nunca tenha sido em vão,
Assim a penitência do tempo seja suficiente
2023/08/16
Todas as línguas do mundo
A sonhar saltámos os dois,
A onda era maior que o desejo,
Conhecíamos todas as letras que faziam do irreal,
Um segundo de certeza,
E avançamos pelo mar,....
O amor,
Pelo menos o que pintava aquela quimera,
Dizia-se em todas as linguas do mundo,
E agora o particular não cabe nas nossas vidas,...
Será sempre pequeno de mais
2023/08/15
Dois pardais
A desilusão do meio dia voltou,
Eram onze e cinquenta e nove,
O sol espiava refúgios no horizonte,
E com isso escapar-se ao trabalho,...
Vejo-te já a uma distância tão incomensurável,
Livre disto,
Das repetições disto,
Dos desafios de alinhares dois passos sem que o queiras,...
É meio dia e um,
E dois pardais mostram-me que a ilusão existe,...
Se por acaso chegar a noite,
Tudo se dissolverá em poeira
2023/08/14
Pintura de olhos sôfregos
A forma,
A pintura de olhos sôfregos,
O olhar,
A razão de estilos diferentes de amor,...
E quem geme,
Quem grita mais alto que tudo isto,
Para explicar o modelo,
A sorte do desorientado em nada perceber,...
E há uma decisão final,
A loucura absorta de esconder o que se reflete,
Para a fúria dos elementos voltar,
E levar o que não se esconde
2023/08/13
Máscara de expectativas
O desafio agora é esta máscara,
Disforme e sem cor,
Com odores persistentes de morte,
Adaptar-se anonimamente na cara desonesta,
Com rugas,
Imperfeições,
Que carrego ao anoitecer,...
Não há expetativas que a dor,
Evolua noutro sentido
2023/08/12
Ignorando que havia olhos
A solução,
O desejo de que as coisas se resolvessem por elas próprias,
Estava na tremura muscular,
Nas dificuldades de visão,
Nas dores que o corpo,
Deixado de ser confiável,
Teimava em constantemente dar,...
Ela,
Com a distância de um olhar ingénuo,
A insinuação de um corpo por descobrir,
E a luz de um sorriso homicida,
Estava lá,
Inalcançável,
Ignorando que havia olhos,
Que rastejavam a cada segundo pelo seu encanto
2023/08/11
Apessoavam a rotina
Eram tempos em que o tempo soava a vento,
Apertavamos o peito com força,
E assim os momentos aprisionavam-se inquietos,
Enquanto a luz nos convidava ao amor,...
Tudo se preenchia em espaços brancos,
Sem significado específico,...
E no centro de cada terra,
Passavam por loucos os que apessoavam a rotina,
Dizendo que era uma frase de regresso ao que se julgou normal
2023/08/10
A mais só o amor
Havia a razão,
O desnorte de nos sentirmos encaminhados para os mesmos sítios,
Onde lírios despropositados nos saltavam aos pés,
Libertando no ar um som de presença,
Quase igual ao subtil nascer do dia,...
E enquanto isso,
A mais só o amor,
As mãos que se evitam,
Para que os corações sejam maiores,
Que toda aquela liberdade de
muitas cores
2023/08/09
Prato de comida
Há um prato de comida,
Uma mulher indecisa olha em volta,
As roupas ardem em sentido figurado,
Há uma tentativa de abrigo num verbo,
Numa profunda admiração pelo incerto,...
Limito a minha presença a uma observação,
Sensorial,
E a pensar que me torno um bicho de recoleção,
Que há-de desaparecer,
Quando a luz branca me fulminar
2023/08/08
Vou magoar-te
2023/08/07
DEIXEM-ME EM PAZ
Sou um idiota feliz,
De roupa inconsequente,
Cabelo alumiado e irregular,
Lambido e desrespeitado pelo vento,
Faço da leitura o meu sangue,
E da desilusão a praça escura dos meus dias,...
Não aperfeiçoo mentiras,
Não escolho o fácil em vez da perfeita inconsequência do silêncio,
Sou feliz neste deserto incolor de ideias,
E deixem-me em paz,...
Grito,
DEIXEM-ME EM PAZ
2023/08/06
AL
Sabes como me podes deixar feliz?,
Sorri-me,
Sorri-me muito,
Como se todas as paredes do mundo fossem a nossa alegria,...
E o teu silêncio cativante,
De lábios desenhados com escorrer de rosas,
Se torne no vento que nos acorda mutuamente,
Ao permitir a luz,
Um vértice só de paraíso,...
A que possamos chamar nosso,
E de mais ninguém
2023/08/05
fátuo e moribundo
seixos partidos,
ondas que desenroladas,
armam um circo de abandono
em toda a extensão de uma praia,
desencontrada do som,
perdida nas saias longas e franzidas,
das mulheres que se arrastam numa
esquina de espaço,...
a voragem da voz que surge,
em rostos entristecidos,
esconde os raios tímidos de sol,
numa manhã que se desenrola
como fogo,
fátuo e moribundo
2023/08/04
Visto o casaco de há anos
Dizem que a minha poesia é de factos,
Consumados talvez,
Como aquelas paisagens cacimbentas,
Que se transvestem de sol numa renovação falsa,
E provisória,...
Admito,
E visto o casaco de há anos,
Preparado para sair e equacionar novos desafios,
Como a loucura de ter de ver claro,
Dentro dos sorrisos falsos das pessoas
2023/08/03
Possessão
Olha o que faço com o teu crucifixo,
Raspo o sexo com ele,
A olhar para central park,
Num hotel perdido no silêncio da neve que cai lá fora,
Possuída por nojos sucessivos do tempo,
Contorço o desprezo pela luz,
Pelo som do amanhecer,...
Amaldiçoo vozes iludidas,
E assim finalmente os nossos lábios vão confundir-se com o sangue,
Este sangue impuro que me escorre das mãos, ...
Vê-me a raspar o sexo,
E que a tua vida recomece em dor
2023/08/02
Um dia gostava de saber escrever assim
Eugénio de Andrade/O copo de água
Devia ser nos começos do verão, os inumeráveis jacarandás de Jerez de la Frontera estavam em flor. Nos pátios da luxuosa vivenda onde me haviam instalado (que o Governo confiscara a um riquíssimo produtor de vinhos da região por fraude fiscal, agora destinada a hospedar gente da cultura), os repuxos erguiam os seus irisados fios de água para logo os deixar cair molemente na face doutras águas cativas em grandes taças de mármore, onde já flutuavam uma ou outra flor de jacarandá. Aquele rumor, a que se misturava às vezes algum canto de ave, parecia-me então a música do paraíso.
Durante aqueles dias, eu ficava por ali sentado toda a manhã com os meus papéis e um copo de água, que o caseiro me punha em cima da mesa, um copo de cristal com grinaldas de flores gravadas na parte superior, poucas coisas haverá tão bonitas como um copo de água fresca no verão, mesmo quando o vidro não tem a o brilho e a transparência do cristal. O caseiro, cuja voz vinda doutro pátio me prendia a atenção com cantares andaluzes muito ornamentados, também colocava cuidadosamente à noite, na minha mesa de cabeceira, um copo de água em tudo semelhante àquele de que falei. E como lhe referisse a beleza, ele ofereceu-me, ao partir, o que estava no meu quarto, como lembrança da minha passagem pela casa. É esse copo que, desde então – e já lá vão tantos anos! – tenho à cabeceira, e sempre com água fresca, como se o verão e a luz dos jacarandás durassem eternamente.
Foz do Douro, 24.3.2001
eugénio de andrade
inimigo rumor número 14
1º semestre 2003
livros cotovia
2003
Assoberbamento
Chegar à terra e de tudo o que nos assusta,
A sombra recortada da casa em que fomos infelizes,
Deitada no chão em desalinho,
Ainda é o que conta mais,....
Recorda-se o medo,
A constante ilusão de que o tempo se vai sobrepor à doença,
Roupas até de felicidade,
Que duraram pouco,...
E de mãos engatilhadas atrás das costas,
Segue-se uma viagem sem destino,
Porque se há lugar onde o assoberbamento vai chegar,
Ali não será
2023/08/01
Agostando a 9 de Março
Um político,
Um gestor de desilusões,
Quem molda a vontade,
Os risos,
O choro,
A vontade de chorar,
Anula-se na noite,
Faz pouco com o que tem,...
Há um som persistente de vontade,
Que dança desencontrado no ar,
E um político persiste,
Com a verdade desmaiada na mentira