Os dedos não sentem. O rosto tateia a chuva, pressente-a como pode. Recolhe-se numa contrição sem som, apenas teatral. O corpo contorce-se, irreprimível, evitando desníveis de caminho. A força de uma juventude, neste caso, de pouco ou nada conta. Ao lado daquele monumento de um tirano, repleto de vandalismos sem sentido mas que o povo sente, há uma pessoa que tenta exaurir-se de pavores. Anda em círculos, quase respeitando um caminho predefinido. O senhor, chamemos-lhe assim, tira do bolso do casaco um pequeno dispositivo eletrónico de som. Sem travar a marcha, atabalhoadamente enfia os auriculares nos ouvidos, e com a ponta de um dedo solta o som. Absorve música inofensiva, mas complexa ainda assim. Parecem vilancetes de uma Idade Média perdida. São na sua língua natal, mas custa-lhe a entender os trinados melódicos de uma voz feminina, que parece reportar ao sítio onde está. Sem aquele monumento de um tirano, repleto de árvores, com pássaros pequenos em diversos voos concêntricos, tudo seria um sonho.
não me parece a dor, não estou desolado com lábios secos, gretados, duas formas de ver o abandono, repousados no adeus inocente com que acabas este, e qualquer dia,...
não me sinto desolado, porque o desenho dos teus olhos, o que segue de ponta à outra da tua fronte, não está no domínio do real, do que dizem os livros fechados, e esquecidos por nós,....
às vezes a frase completa-se, e percebemos que o som, não serve para frequentar o incorpóreo
As memórias eram na realidade a única coisa que ficou,...
Tudo se tinha esgotado. O tempo, que sempre nos tinha sido limitado. A voracidade de um espaço, que nos envelhecia ao segundo. A questão do ser. Ao acordar uma memória, ao adormecer uma sombra,... Recordar doía,... Sublinhar pesava tanto como a água. Continuar, tinha a forma de um caminho de duas cores. Opaco, e negro. Como os olhos que já não nos viam.
to catch a thief (1955), Alfred Hitchcock Tirado daqui
ninguém pede o jornal emprestado, ninguém soçobra a críticas, ninguém faz por querer insultar, todos resistem aos óculos escuros, curtos e sensaborões, da manhã certa e inocente que abraça a noite,...
o som do falhanço, de chorar no escuro porque o dia envergonha, o som multiplicado por mil dessa dor, que ninguém descreve, que ninguém consegue calar, não se pode chamar,...
não é para aqui chamado,....
a vontade percussora do sofrimento, pode mais que tudo, neste quadro sem autor
a verdade dói, fazemos assim este será um texto teu, de pontuação errada, como se não fossemos o que já fomos, que não doesse o que me pesaste num beijo, e depois se perdeu com uma traição,...
um amigo, um desejo, uma volta apertada da noite, dizemos que nos queremos, e o que vier, aí uma dor decidirá o que há a fazer,....
no entretanto, tudo o que lês é teu, há uma porta aberta à espera para voar
os pássaros dão cabo de mim, é verdade, e conseguem ver o vento, e explicar a tristeza melhor que nós,....
foi por eles que percebi que o que é triste não é só nosso, é de todos os que nos sentem, e ouvem, e apercebem do erro que cometemos em nos julgarmos, acima do que somos mesmo,...
Esta é uma memória como outra qualquer. A voz do Jon Bon Jovi ecoava pelos pátios da escola, quase dissolvida no vento de inicio de Outono. Os putos andavam todos de fato de treino, relogios casio nos pulsos, e eu tinha-me lembrado de pôr o meu grupo de amigos a rir. Depois sofri com isso. Lembro-me que no meio das gargalhadas de gozo com o Júlio, reparei na sua expressão de raiva a crescer. A mão direita a pentear os caracóis soltos como lã de ovelha, a esquerda a bater descompassadamente na perna, e mais rápido que o toque para o fim do intervalo ele avança contra mim, e prega-me um direto na cara que me projeta contra o vidro da sala de trabalhos oficinais. Foi nesse preciso momento que o livin on a prayer acabou, e os miúdos voltavam como autómatos para as aulas.
Se tinha posto toda a gente a rir, já ninguém ficava agora para trás a mostrar piedade pela justa retribuição que eu tinha acabado de receber por ter humilhado um colega. Dei por mim como o último no recreio. A bochecha a doer-me. O Júlio era um bom boxeador. A minha mochila caída ao meu lado ah, e começava a chover.
Levantei-me e segui para a aula. Acho que era matemática. Nao me recordo bem. Isto foi em meados de 1986, e aqui sentado na sala de minha casa, com uma playlist de spotify a tocar, e um laptop aberto em ângulo reto, faz-me pensar que se calhar na altura, eu já sabia mais o que não queria, do que tinha certezas sobre como seria o meu futuro. Fui o último a entrar na sala. A professora de matemática, uma tipa que eu hoje consideraria decerto insegura, com as suas constantes blusas em turtleneck, e um silêncio entre aulas que parecia desprezar os alunos, só me pediu para fechar a porta, e sentar-me ao lado do Júlio.
Nós éramos miúdos de 10, 11 anos, que não sabíamos nada sobre proporções de insultos, e amor próprio, ou até domínio de um discurso coerente. Só gostávamos de ser engraçados, os mais fixes.
Depois de 40 e tal minutos de arrazoado sobre equações, saímos e eu fui pedir desculpa ao Júlio.
Lembro-me que ele estava a ler A Bola, na altura em que ainda era um lençol que servia de abrigo aos vagabundos nas ruas. Sentei-me ao lado dele. A Samantha Fox tinha começado a cantar, e foi por entre um insinuante 'touch me'', que abri o coração:
-não ficaste chateado com aquilo pois não?
Ele voltou a não responder. Estava mais interessado na crónica do Benfica-tirsense. Nem se importava que, mais uma vez, estivesse a chover.
Estava à porta da Sé. O encontro estava combinado. Havia
muito. Apareceu antes de tempo, como era seu apanágio. Gostava do que tinha
escolhido para vestir. Um casaco de seda azul, a combinar com uma camisa
branca, e umas calças justas. Uns sapatos desajustados, mas isso era um
pormenor. Pensou nela. No que estava ali para dizer, mas principalmente para fazer.
O tempo refrescava. Olhou para o céu de Lisboa, que em inícios de Outubro, já tinha o Outono assente em todos os momentos, e a brotar de todas as calçadas já
desfeitas pelo tempo. Mudava de tonalidade a cada segundo, como sempre se
recordou. Uma louca sem destino empurrou-o, enquanto murmurava uma ladaínha
desconexa. O tempo passava, e recordou-se de como a tinha conhecido. Há meses,
que à medida que se foram desfiando pareciam agora momentos. Apenas momentos.
Ela estava a falar com um homem de barba rala e grisalha, e vestido fora de
tempo e estilo. Era rececionista de qualquer coisa que não vem ao caso, e
estava assustada. Parecia perdida, e num português inofensivo perguntava o caminho
para o centro da cidade. Era evidente que não estava no seu mundo, mas ele era dali e sempre te tinha sentido de milhares de universos que não este.
Manteve uma distância de segurança, e percebeu que no meio do nervosismo
evidente, da roupa fora de estação, estava ali alguém que valia a pena conhecer….
hoje compreende-se que ela precisava de todos, dos despidos, das vicissitudes de uma bebida podre, do tempo aos pingos pela parede enegrecida, precisava de um desenho de felicidade que nunca foi o seu,....
hoje, que chove desalmadamente quase tanto, como a terra estala, ela vai precisar que a aplaudam, e lhe digam que o seu ventre é honesto, o que intumesce todas as mulheres finalizadas,...
vai precisar de mim, e da minha melhor ausência comprovada
ofereço-te um peso, a vertente discreta de um sorriso, duas pedras sorrateiras em cima de um pé, a coragem, a vontade de partir e não voltar, enquanto a dor se aguenta, a dor de cabelos de menina, vestido de sexo dúbio, a dor que levamos pela mão, e perdemos de bom grado,....
ofereço-te ainda mais pesos, assim a verdade permanece, e a lógica desaba em poeira negra
não há suspeitas de nostalgia, por programas de televisão, por lamentos infindos em tardes passadas junto à rádio, não se percebe como chegaremos lá, e é um final de tarde de 1969, com a tristeza a encafoar-se pelas frestas das pedras da calçada, soltas por desmazelo,...
era minha, não sobrava dúvidas que era minha, e havia de ser para sempre, só o tempo teria de pingar, como uma torneira mal fechada, até que a tristeza me tomasse como adulto, e uma nova pele ajudasse, a esconder a dor
tinha aprendido a folheá-la, calmamente dizer não quando era preciso, de uma lombada que se rasgava, fazer a possibilidade de um estibordo impreciso ao largo do mar,.....
a sua pele não eram páginas, eram costas irregulares de beira-mar, batidas pela fúria incomensurável de um mar sem idade,...
e sabia tudo enquanto percorria páginas de rotas sem sinal, e de tempo sem destino, que se fechava no baque poeirento, da partida sem data de regresso
continue a viver, apeteceu-lhe dizer o que aparentava não ter encaixe com a realidade,...
soava bem naquele momento, e fê-lo com um amparo momentâneo para afugentar a tristeza, e o gesto certo, de suster as lágrimas, enquanto o ar parecia dissolver um cheiro inesperado, a cera de abelhas,....
seguiu caminho sem olhar para trás, enquanto um colibri desfazia um triângulo irregular por cima da sua cabeça, desaparecendo no etéreo do ar
supunha saber que com a filosofia, o estudo das desilusões humanas, do priorado da razão sobre a depressão, havia uma notícia que cumpria trazer o medo, um som que o ouvido humano não alcançava,....
uma música que compunha tudo, e fazia com que o fazer, tivesse de continuar, e sobrepor-se ao sentir, ao esperar, ao chorar,....
tanto verbo, e só uma vontade de ficar em paz com o desejo
não me desiludas, as dores suplantam a vontade, e o corpo sobeja no que eram os teus risos, a tua vontade de trazer a alegria pela mão, e abrir janelas à vontade de chorar,....
espero do presente o normal, seja o que isso for, em que calças couber, e em que roupa pernoitar,...
o normal de ti, da presença invulgar, e invisível de ti,...